Má-fé contra o direito de abortar, por Lena Lavinas

30 de novembro, 2017

A má-fé de alguns que professam a fé para negar às mulheres o direito de abortar por escolha parece mesmo inesgotável, além de ser desavergonhadamente agente de fake news.

(O Globo, 30/11/2017 – acesse no site de origem)

No GLOBO de 27 de novembro, o deputado Márcio Pacheco ocupa a página da seção Tema em Discussão do jornal para insinuar que, seguindo dogma expresso por Madre Teresa de Calcutá, a França, país laico onde o aborto é lei desde 1975, tenta dissuadir mulheres de praticar aborto seguro, gratuito e digno, levando-as a optar pela doação, por acolhê-las em casas de apoio à vida.

Trata-se de uma mentira.

Primeiro, não existe serviço público financiado pelo Estado francês para manter o que foi denominado, não por acaso, pelo deputado “casas de apoio à vida” como opção ao aborto. Existem associações religiosas que oferecem tais serviços há tempos. Na França, toda mulher que desejar levar a termo uma gravidez e colocar um bebê em adoção tem duas opções: pode dar à luz sob a condição de X (na mais completa clandestinidade) ou abertamente. Em ambos os casos, tudo se passa na rede pública de saúde, uma das melhores do mundo. A modalidade “sob X” vem perdendo espaço, na medida em que a busca pela verdadeira identidade tem aumentado por parte das novas gerações, rompendo barreiras antes impostas pela falsa moral dos bons costumes.

Mas vamos aos dados mais recentes, disponibilizados no site do Instituto Nacional de Estudos Demográficos. Em 2011, 1.007 recém-nascidos obtiveram o estatuto de pupilos — crianças destinadas à adoção —, sendo que exatos 628 o foram na condição de X. No mesmo ano, foram realizados 200 mil abortos e nasceram 600 mil crianças. Na França, o número de abortos mantém-se nesse patamar constante ao longo do tempo. E a grande maioria se faz através de medicação assistida, crescentemente em consultórios, sem risco algum.

Não bastasse manipularem comissões especiais, sob o argumento de proteção às mulheres — extensão da licença-maternidade para mães de bebês prematuros — para fazer aprovar às escuras mudança em texto constitucional, sabotando por completo a credibilidade de um Congresso já exangue, que envergonha a nação, os senhores que se julgam donos do Brasil ainda por cima nos consideram a todos não apenas crédulos, mas tolos e ignorantes.

Sim, vamos acompanhar a França naquilo que a pátria da revolução tem de melhor. Vamos também no Brasil instituir uma lei, como lá, aprovada em 2014, que torna crime, passível de dois anos de prisão e € 30.000 de multa, toda tentativa de impedir ou tentar impedir a prática ou a obtenção da correta informação sobre o direito de interromper uma gravidez. A lei foi promulgada justamente para prevenir a multiplicação de sites que buscam disseminar falsas informações, colocando em xeque direitos de todas as mulheres. O que faz o “nobre” deputado aqui, certamente não faria lá.

Na França, existe uma norma em prol da procriação, que orienta a legislação. Diz a norma que uma criança não deve ser fruto do acaso ou de um acidente de percurso, mas um ser desejado, a quem se deve amar plenamente, oferecendo-lhe ainda o máximo de atenção e boas condições de vida. Na França, a jovem Rebeca Mendes, que teve a suprema coragem de enfrentar toda uma sociedade para demandar ao STF o direito de abortar para interromper uma gravidez involuntária, não estaria na imprensa expondo seu sofrimento e sua dor. Rebeca Mendes, se vivendo na França, não estaria ameaçada de ver agravadas ainda mais suas precárias condições de vida, nem correria o risco de ser humilhada por ter tido sua demanda rejeitada pela Corte, como acaba de acontecer. Como protegê-la em uma sociedade onde a violência de gênero só faz se alastrar porque se assenta na ideia de que o corpo das mulheres não lhes pertence? É hora de reconhecer o direito à livre escolha de Rebeca Mendes.

Os troianos perderam a batalha porque à época provavelmente não ouviram suas mulheres, que viviam confinadas. Cavalos de Troia nunca mais. Hoje quem está na frente de batalha são as mulheres. Para vencer.

Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da UFRJ

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