(Debora Diniz, especial para o caderno Aliás, de O Estado de S. Paulo) Política de saúde aplicada às drogas reaparece como forma de minimizar riscos do aborto que a lei criminaliza, mas não reduz
Pode parecer um contrassenso científico, mas as lógicas culturais não seguem os manuais de medicina. Em Bangladesh, o aborto é um crime e os médicos são proibidos de fazê-lo. Mas o uso de métodos para regular o ciclo menstrual não é considerado aborto: são técnicas que permitem às mulheres se certificarem de que não estão grávidas. Em caso de atraso menstrual, a mulher sabe que não poderá realizar um aborto, mas tem disponível um conjunto de informações sobre como regular a menstruação. Um observador externo talvez descreva as técnicas utilizadas pelas mulheres em Bangladesh como abortivas, mas não é assim que o ordenamento legal as enquadra – são medidas de saúde pública para reduzir os danos provocados pelo aborto inseguro. Mulheres informadas sobre os métodos de regulação da menstruação realizam menos abortos em condições inseguras. Morrem e adoecem menos que aquelas que não sabem como regular a menstruação.
Foi a ideia da redução de danos que fundamentou ações de informação sistemática sobre os riscos do compartilhamento de seringas ou mesmo que levou à distribuição de seringas descartáveis em pontos de convivência de usuários. Há um pressuposto silencioso na política de redução de danos: a proibição legal não é suficiente para coibir as práticas, por isso uma medida de saúde pública seria controlar as consequências. Uma forma eficiente de reduzir danos é informar as pessoas sobre os riscos envolvidos em suas atividades e comportamentos. Outra forma é esclarecê-las sobre métodos mais seguros para suas práticas de risco.
O risco do aborto não está no procedimento médico, mas na ilegalidade. Sabemos que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto no Brasil. Metade delas usou medicamentos à base de misoprostol, sozinhos ou combinados a chás e ervas. As autoras de uma descoberta médica que revolucionou a morbimortalidade do aborto no mundo não foram cientistas laureadas com o Prêmio Nobel de Medicina, mas mulheres anônimas que testaram no próprio útero os poderes abortivos de um medicamento para úlcera gástrica. Essas mulheres poderiam ser como os príncipes de Serendip do conto de Horace Walpole, conhecidos pela criatividade científica exercida ao acaso. Mas as mulheres anônimas são mais do que os príncipes criativos. Elas foram cientistas e cobaias de uma necessidade de saúde: por tentativa e erro, controlaram a eficácia do misoprostol para o aborto mais seguro que o realizado com agulhas de crochê ou chumbinho. A verdade é que a Organização Mundial de Saúde (OMS) só deu o tom científico para o que os saberes femininos já dominavam havia algumas décadas. Com a OMS e as comunidades médicas, o misoprostol passou a ser recomendado para fins obstétricos.
Imagino que uma política de redução de danos para o aborto no Brasil poderia seguir dois caminhos. O primeiro, inspirado no conhecido caso uruguaio, ou, mais longe na história do feminismo, na organização não governamental holandesa Women on Waves. As mulheres têm o direito à informação; cabe a elas decidir como querem utilizá-la para suas escolhas reprodutivas. Para reduzir os danos provocados pelo aborto ilegal e inseguro, profissionais de saúde ou organizações sociais tornariam disponível a informação sobre leis, métodos e riscos, além de antecipar cuidados necessários à saúde. O Uruguai apostou que a informação é mais eficiente quando controlada por médicos, e os movimentos feministas acreditam que as próprias mulheres devem fazer circular essa informação. Por isso, pelo menos sete países na América Latina e no Sudeste da Ásia já criaram formas alternativas de informar as mulheres sobre métodos seguros para o aborto ilegal – desde serviços de 0800 por telefone a sites ou redes sociais.
O segundo caminho é mais ousado, mas já adotado no Brasil pela política de drogas. Assim como se distribui a seringa, tornar o misoprostol acessível seria uma medida de redução de danos. As mulheres já usam o misoprostol para abortar, mas não sabem sua procedência ou desconhecem os regimes corretos para o uso. O medicamento é adquirido de vendedores ambulantes ou pela internet. Há quem possa alegar que tanto a seringa quanto o misoprostol seriam medidas indevidas para uma política de saúde, pois poderiam estimular práticas ilícitas. A saída para os céticos da política de redução de danos seria aumentar a fiscalização e a punição ao aborto. A verdade é que castigo e perseguição não são medidas de saúde, mas ações de um Estado penal.
DEBORA DINIZ é antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Acesse em pdf: Pelo menor dano, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 10/06/2012)
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