“Nos últimos anos toda a ampla gama dos direitos sexuais veio à tona com uma força muito grande. Na região, vários países estão reconhecendo, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que nem se cogitava em 1994”, afirma Carmen Barroso

06 de setembro, 2013

2011 02 18 Carmen Barroso 1-1(Jacira Melo/Agência Patrícia Galvão) Durante a 1ª Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento na América Latina e Caribe, realizada pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e o governo uruguaio em Montevidéu, entre os dias 12 e 15 de agosto, a Agência Patrícia Galvão entrevistou Carmen Barroso, diretora para o hemisfério ocidental da IPPF (International Planned Parenthood Federation), uma referência mundial em direitos sexuais e reprodutivos.

Na entrevista, Carmen fala da influência em nível global dos consensos alcançados nas conferências latino-americanas; sobre a garantia de direitos sexuais de gays e lésbicas nos últimos anos na região; dos direitos sexuais dos jovens; do direito a educação sexual de primeira para todos; e sobre a importância de se reafirmar a separação entre Igreja e Estado como parte do desenvolvimento, que não se limita aos aspectos econômico ou social, mas também político.

 

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Declaração da Sociedade Civil na 1ª Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da Cepal

 

Na sua avaliação, qual é a importância da Conferência Regional neste momento?
Carmen Barroso – É muito importante porque é uma região onde está acontecendo muita coisa nova, como uma democratização enorme em termos políticos que não se traduziu em ganhos sociais ainda. Houve uma relativa diminuição das desigualdades, mas elas persistem de forma muito gritante, não só as desigualdades sociais, mas também a desigualdade de gênero.

Apesar de ter havido progressos, de as mulheres terem alcançado postos como a Presidência de repúblicas, para a grande maioria das mulheres há ainda uma sobrecarga enorme, porque elas combinam o trabalho doméstico com o trabalho externo, geralmente sem infraestrutura para apoiar o cuidado das crianças, velhos, doentes etc. E também sem muito apoio dos companheiros, que ainda relutam em dividir o trabalho doméstico.

Mas existe uma transformação. Não é a mulher de 20 anos atrás que está na região. Ela tem outra cabeça, outra mentalidade, vai às ruas, protesta. E, como estamos em uma região em ebulição, mas relativamente isenta de maiores fundamentalismos, esta Conferência vai ajudar a definir a agenda para o desenvolvimento a partir de 2015, quando termina a vigência dos atuais Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio. E que lugar vai ter nessa agenda o questionamento da desigualdade de gênero, o posicionamento dos direitos sexuais e reprodutivos? O relativo consenso pode ter uma influência em nível mundial, porque muitas das mudanças que ocorreram nessas reuniões globais da ONU surgiram na América Latina e Caribe.

 

“Existe uma transformação. Não é a mulher de 20 anos atrás que está na região. Ela tem outra cabeça, outra mentalidade, vai às ruas, protesta. E como estamos em uma região em ebulição, mas relativamente isenta de maiores fundamentalismos, essa Conferência vai ajudar a definir a agenda para o desenvolvimento a partir de 2015, quando termina a vigência dos atuais Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio”

 

É muito interessante você falar da agenda da Conferência e do lugar de gênero, da mulher, em diálogo com o conjunto, como por exemplo, a antiga agenda de creches, pré-escolas, cuidados, além dos direitos sexuais e reprodutivos, que são fundamentais.
Porque a gente está percebendo claramente que os direitos humanos são indivisíveis. Quando você fala em direitos sexuais e reprodutivos é o direito de ter filhos ou não. Mas para ter o direito de ter filhos é preciso ter creches. Senão, como é que você vai fazer se não tem recursos para cuidar desse filho de forma adequada? Aí você acaba não tendo filhos porque não tem condições de criar.

As feministas sempre pensaram assim, mas a agenda, em termos de estratégia, acabava sendo definida sempre de uma forma muito estreita em relação ao que é possível avançar em determinado momento. Não é que não haja uma ligação intrínseca entre as diversas agendas, como, por exemplo, direitos reprodutivos, creche, pré-escola etc.

Em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, o Brasil parece ter um posicionamento muito claro de não renegociar o Plano de Ação do Cairo. Mas, para além disso, qual é a expectativa?
Isso foi um dos maiores avanços dos últimos 20 anos, porque o Plano de Ação do Cairo é relativamente omisso em relação aos direitos sexuais. Quando se falava em direitos sexuais e reprodutivos só se ouviam os “reprodutivos”, os “sexuais” ficavam meio escondidos. Mas nos últimos anos toda a ampla gama dos direitos sexuais veio à tona com uma força muito grande, na nossa região inclusive, onde vários países estão reconhecendo, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que nem se cogitava em 1994. Nem os gays e lésbicas tinham certeza se queriam casamento: ‘coisa mais antiquada!’, ‘para quê?’

E não só em relação aos direitos relativos à orientação sexual e identidade de gênero, mas também em relação aos direitos sexuais dos jovens, embora muitos países da região ainda mantenham o sexo entre pessoas de 16 anos como ilegal. Um posicionamento completamente irrealista e que tem consequências. Nós que trabalhamos na IPPF (Federação Internacional de Planejamento Familiar, na sigla em inglês) com planejamento familiar e acesso à anticoncepção vivemos diante do dilema de que, em alguns países, se você dá um anticoncepcional a uma menina de 16 anos pode estar cometendo um crime porque ela não deveria estar praticando o sexo, de acordo com a lei. É muito importante que a gente discuta esse tipo de coisa.

 

“Nos últimos anos toda a ampla gama dos direitos sexuais veio à tona com uma força muito grande, na nossa região inclusive, onde vários países estão reconhecendo, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que nem se cogitava em 1994”

 

Sobre os direitos sexuais dos jovens, quais são as perspectivas de avanço dessa agenda?
Há tratados internacionais de direitos humanos que dão respaldo a uma nova visão dos direitos sexuais dos jovens, porque a Convenção dos Direitos da Criança estabelece que até os 18 anos – como assim se considera – a criança é titular de direitos segundo as suas capacidades de desenvolvimento.

É evidente que uma jovem de 15 anos pode perfeitamente decidir se quer ou não praticar o sexo e se precisa ou não de anticoncepcional. Outro direito muito importante é o direito do jovem à informação. E aí chegamos na educação sexual abrangente, que até hoje é muito pouco implementada. Os governos prometem, dizem que toda escola pública terá, assinam tratados e acordos – como o assinado entre ministros da educação e saúde da região – mas na hora em que você olha país a país são muito poucos os que têm algum programa decente de educação sexual nas escolas que ofereça aos jovens a oportunidade de discutir relacionamento, relações de gênero, autonomia, direitos humanos.

Há 50 anos, quando a IPPF foi fundada, acesso a anticoncepcional era tabu. Estamos na época de fazer uma revolução semelhante em relação à educação sexual. Está na hora de termos uma educação sexual de primeira para todos e todas. E é importante ressaltar o ‘para todos’ porque essa região ainda é muito desigual.

Quando você avalia o problema da gravidez na adolescência na nossa região, é um problema da menina pobre. E para metade delas é um problema, mas para a outra metade é solução, porque muitas querem ter filhos para se libertarem de uma família opressora, adquirir status de adulta e ter algo interessante para fazer na vida. E cuidar de um bebezinho é melhor do que ficar mofando, sem estudar, sem oportunidade, sem nada para fazer da vida. Mas tem uma grande porcentagem que não quer ter filhos e tem, simplesmente porque não conseguiu evitar.

 

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E além de não terem informação sobre como evitar ou interromper a gravidez, também não contam com uma rede de apoio que permita que elas continuem estudando, por exemplo.
Já a menina rica se previne ou, se não se previne, interrompe a gravidez. Por isso a diferença nas taxas de gravidez entre meninas pobres e ricas é imensa. E se a das meninas ricas está diminuindo, entre as meninas pobres é um problema grave que está aumentando. E isso não se resolve só com acesso a informação e contraceptivos, mas é necessária também uma educação melhor para que ela tenha alternativas de trabalho e melhores oportunidades.

Ao menos no Brasil, a avaliação que se tem enquanto sociedade civil organizada é que a pressão sobre os governos, especialmente o governo federal, por parte de grupos religiosos, com influência e bancadas cada vez maiores nos legislativos, tem impedido avanços e colocado ameaças permanentes de retrocessos. Esse fenômeno brasileiro acontece em toda a região?
No Brasil é mais marcante por causa do poder econômico dos grupos religiosos, controle de mídia etc. Não conheço nenhum outro país onde esse poder seja tão concentrado. Mas em toda a região é muito forte a resistência dos grupos religiosos.

Para ficar em um exemplo recente, a Associação Pró-Família, que integra a IPPF na República Dominicana, fez uma campanha de mídia muito bem feita sobre direitos sexuais. Eram quatro spots, um deles sobre aborto, que tiveram muito impacto e uma grande presença na televisão durante quatro meses. Quando terminou a campanha, a Igreja entrou com um processo civil contra a Pró-Família. Um juiz deu ganho de causa à Associação, mas, mais importante, o “tribunal da opinião pública” ficou favorável à Pró-Família. Isso na República Dominicana, que é um país super-religioso. Isso mostra que o poder das religiões existe, mas às vezes é mais temido do que devia.

A região está se transformando. O poder da religião muitas vezes não se traduz na vida cotidiana, pessoal. Cada um age de acordo com a sua consciência. Qualquer pesquisa de opinião que se faça na região mostra que as pessoas não seguem os ditames da sua religião na vida pessoal. Então, verifica-se que é mais um poder político e econômico que um poder moral.

 

“Os governos prometem, dizem que toda escola pública terá, assinam tratados e acordos – como o assinado entre ministros da educação e saúde da região – mas na hora em que você olha país a país são muito poucos os que têm algum programa decente de educação sexual nas escolas que ofereça aos jovens a oportunidade de discutir relacionamento, relações de gênero, autonomia, direitos humanos”

 

 

Uma pesquisa com jovens realizada pelo DataFolha antes da visita do Papa vai ao encontro do que você está dizendo, principalmente no que diz respeito à pílula do dia seguinte: 82% dos jovens católicos se declararam favoráveis.
Claro! Esse novo papa é muito inteligente. Se ele foi ao Brasil e não tocou no tema da pílula do dia seguinte é porque sabe que estaria indo contra a história, contra evidências científicas. Dizer que a pílula do dia seguinte é abortiva é não saber fatos elementares da Biologia, que antes da fecundação no útero há um óvulo e o esperma, que demora um tempo para eles se encontrarem e acontecer a fecundação, e que a pílula do dia seguinte atua antes disso. Ficam negando evidências científicas, como foi negado em relação à camisinha, o que é de uma crueldade e irresponsabilidade incríveis. Quantas pessoas foram infectadas pelo HIV e morreram por não usar camisinha seguindo esses conselhos errados de padres e religiosos?

Nos anos 1990, as conferências regionais e mundiais das Nações Unidas tiveram significativa repercussão na mídia, perante os Estados nacionais, a sociedade civil organizada. Também resultaram em planos de ação em geral progressistas, que trouxeram avanços. Hoje não vivemos mais nesse ambiente. Como você, que participou daquele processo anterior, vê este momento de realização desta Conferência, principalmente em termos de governos?
Em relação à Conferência do Cairo em particular tínhamos um pilar muito bom, que era o papa da época, que atacou tanto a Conferência que a tornou um evento midiático. Mas avalio que, em relação às conferências sociais de modo geral, o mundo está mais complexo, globalizado, o poder do setor privado aumentou muito.
Nos anos 1960, a ajuda ao desenvolvimento tinha um peso muito grande nos orçamentos dos países pobres. Agora, muito menos. Depende-se mais do comércio do que dessa ajuda ao desenvolvimento.

Então, o que a ONU decidia nessas conferências refletia nas políticas dos países em desenvolvimento. Hoje ainda se reflete de forma importante, mas o papel atual é muito menor do que naquela época.

As pessoas também diversificaram seus interesses. Há uma certa fragmentação, que é produto de nossa própria culpa. Até na temática dos direitos da mulher e reprodutivos há os que se interessam por uns e não por outros. E essa segmentação prejudica. É necessário ter uma visão global do que é o desenvolvimento. E isso responde um pouco também à questão da influência das religiões, à importância de se reafirmar a separação entre Igreja e Estado, o que também é parte do desenvolvimento, que não é só econômico ou social, é também político. E o desenvolvimento político exige essa pluralidade, essa separação, o respeito ao Estado laico.

 

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Gostaria que você falasse um pouco mais sobre essa conexão entre desenvolvimento e Estado laico.
Acho que atualmente, com a grande revolução da comunicação, que eu nem mencionei – em 1990 nós ainda trabalhávamos com fax, não tinha banda larga. Hoje, as pessoas estão ligadas o tempo todo com o mundo. Isso facilita, embora também traga a dificuldade da fragmentação. Mas vejo uma grande democratização.
Em relação às conferências dos anos 1990, hoje temos muito mais jovens, indígenas. É muito mais diversificado o contingente populacional que está tendo acesso aos fóruns de decisão. E isso é ótimo.

O que se pretende com o Estado laico é que cada um possa crer no que quiser, mas respeitando os outros. Não é eliminar nenhuma crença, mas também não permitir que nenhuma delas se imponha às demais. Ou seja, garantir direitos iguais para todos os que têm qualquer tipo de fé e aos que não tenham nenhuma fé. É uma questão de liberdade – você prestar culto a quem quiser – e de igualdade de direitos – ou seja, tendo uma religião diferente da minha você não tem o privilégio de impor a sua religião a mim. Se você não acredita que o aborto deva ser legal porque a sua religião ensina isso, mas eu acredito que deva ser legal porque a minha religião ensina assim ou porque eu não tenho religião, eu e você temos que ter os mesmos direitos. O Estado não pode impor os direitos de uns sobre outros.

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