Em luta por direitos, ONG organiza curso de formação para atuação feminina em emergências climáticas
Karla Rodrigues, 40, viu sua casa sumir embaixo da água em Porto Alegre depois de fugir com a filha Maria Eulália, 12, durante a tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul. Denize Milon, 44, passou pelo mesmo com a filha Emile Vitória, 10, em Eldorado do Sul, quando foram resgatadas por um barco e levadas até a capital.
As duas mães encontraram acolhimento em diferentes abrigos, mas assumiram neles a mesma função: proteger as filhas para que não sofressem assédio sexual.
“Coloquei as cobertas que eu ganhava para tapar o lado dela e fiquei no outro lado, pelo qual passavam as pessoas. De noite, se ela ia ao banheiro, eu ia com ela. Deixei de trabalhar porque não ia deixá-la sozinha”, diz Karla, que era ajudante geral em uma escola.
No abrigo em que estavam, no centro de Porto Alegre, conta, um homem foi expulso sob suspeita de importunar uma criança de seis anos. “Uma menina estava erotizada, tocando em outras meninas, e uma psicóloga voluntária desconfiou. Quando perguntou, a menina falou que de noite tinha um homem que tocava nela.”
No primeiro abrigo para o qual Denize e Emile Vitória foram designadas, depois do resgate de barco, um homem ficou encarando a menina com interesse. “Achei nojento”, diz, enquanto brinca com a pulseira de miçanga. Ela contou para a mãe, que passou a ficar ainda mais atenta.
Nessa época, no início de maio, já tinham saído notícias sobre mulheres sendo abusadas em abrigos, divulgadas pela ONG gaúcha Themis. Depois da campanha, foram abertos locais de acolhimento exclusivos para mulheres —um deles, a Casa Violeta, para onde as duas famílias foram transferidas e onde hoje dividem o quarto.
“O Estado brasileiro ainda não está preparado para responder às peculiaridades que envolvem as mulheres e como elas são atingidas”, diz Márcia Soares, advogada e diretora da ONG feminista. “As questões das mulheres ficam relegadas ao segundo plano.”
O trabalho de cuidado feito tradicionalmente pelas mulheres, diz Soares, também torna o impacto da tragédia maior para elas, uma vez que costumam ser responsáveis pelas crianças, pelos idosos e pelos doentes.
“Eles [do governo] vão priorizar a ponte não sei onde e vão se esquecer que tinha um abrigo com 6.000 pessoas, e que a comunidade se transfere para dentro dele como ela é. Então, vai para dentro a mulher que tem medida protetiva de urgência, porque o marido é violento e pode matá-la, e o marido vai para lá também”, diz a diretora da ONG.
A Themis organizou de agosto a dezembro de 2024 um curso de formação para atuação de mulheres em emergências climáticas com as voluntárias da ONG que agiram durante as chuvas no Sul. No próximo mês de março, como resultado do curso, será lançado um protocolo para atuação em emergências climáticas pela perspectiva de gênero.
Em maio do ano passado, após ter saído da sua casa alagada, uma das participantes do curso, a promotora legal popular Fabiane Lara dos Santos, 49, recebeu uma ligação. Era uma mulher que ela atendia em sua comunidade na cidade de Canoas.
“Ela falou que só lembrava o meu número de telefone e que estava passando por uma situação porque foi ao banheiro e um homem se sentiu à vontade de entrar no banheiro com ela lá. Quando ela pediu para ele se retirar, ele foi super agressivo, aí ela gritou e se criou uma confusão geral”, conta Fabiane.
Como nada aconteceu depois da discussão, a única forma de ajudá-la foi retirando-a do abrigo. Não houve denúncia.
A Casa Violeta, mantida pelo Instituto Survivor, organização privada, só começou a funcionar no dia 29 de maio de 2024, a partir da experiência de outros dois abrigos menores e emergenciais abertos após as denúncias de violência contra mulheres em Canoas e em Novo Hamburgo. A ideia é que funcione até maio deste ano, como um espaço de acolhimento a longo prazo.
“Foi uma construção até serem mobilizadas ações específicas para mulheres”, diz a coordenadora do espaço, Juliana Napp. Segundo ela, quando a casa foi aberta, começaram a chegar mulheres em vans com suas roupas em sacolas de lixo pretas. Elas já tinham sido expulsas de diversos outros abrigos, diz. Além de terem saído de casa devido à água, tinham enfrentado situações de violência em lugares onde deveriam ser acolhidas.
A casa, que recebeu 129 mulheres e crianças até janeiro deste ano, trabalha com uma equipe multiprofissional, incluindo enfermeiras, pedagogas, psicólogas e assistentes sociais para auxiliar as mulheres que precisam de mais estrutura para voltar à vida normal.
Conforme foram se organizando, as mulheres foram saindo do espaço. Ficaram aquelas que precisam de maior assistência por não possuir base familiar ou que já estavam vulnerabilizadas antes mesmo das chuvas, diz Napp.