“Uma em cada cinco mulheres que estão hoje na faixa etária dos 40 já fez pelo menos um aborto na vida”, revela a professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB), fundadora e pesquisadora do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (Anis), Débora Diniz. Há pelo menos 15 anos à frente de ações no Supremo Tribunal Federal (STF) que envolvem temas relacionados ao aborto, a pesquisadora defendeu no início de agosto, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, protocolada em 2017 pelo PSol e pelo Anis, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana. Um dos depoimentos mais esperados na audiência no STF, a pesquisadora apresentou a metodologia e os resultados da principal pesquisa sobre a magnitude do impacto do aborto no Brasil, a Pesquisa Nacional do Aborto, financiada pelo Ministério da Saúde em 2010 e 2016, e que recebeu o prêmio de melhor estudo em Saúde das Américas em 2012, outorgado pela Organização Panamericana de Saúde. Graduada em Ciências Sociais e com mestrado e doutorado em Antropologia, Débora explica nesta entrevista ao Extra Classe que a legislação, ao criminalizar o aborto, impede que as brasileiras façam o procedimento de forma clandestina – o que resulta em milhares de mortes já que o aborto é um evento normal na vida reprodutiva das mulheres. Ou seja, a Lei apenas impede que as mulheres façam o aborto de forma segura. “Se todas as mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão hoje ou já tivessem passado por ela, teríamos um contingente de 4,7 milhões de mulheres presas, pelo menos cinco vezes a massa carcerária do sistema prisional na atualidade”, constata.
(Extra Classe, 13/09/2018 – acesse no site de origem)
Extra Classe – Considerando que a criminalização do aborto pela Legislação brasileira não impede que as mulheres façam aborto, mas impede o aborto seguro, qual é a questão central nesse debate?
Débora Diniz – Essa é justamente a questão. A criminalização já se mostrou medida ineficaz para lidarmos com a situação do aborto no Brasil. Hoje, apesar de ser crime, uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez um aborto em algum momento da vida, e todas essas mulheres se expuseram aos riscos de saúde, de vida e de prisão que são impostos pela criminalização. O que esses números nos mostram é que o aborto é um evento comum na vida reprodutiva das mulheres e que devemos procurar formas mais adequadas de tratarmos a questão do que com cadeia.
EC – A quem interessa a manutenção da criminalização em Lei?
Débora – O Brasil é um país que apresenta ainda hoje, assim como em grande parte dos países latino-americanos e caribenhos, uma experiência de laicidade incompleta. Nesse contexto, a questão do aborto é apresentada à sociedade civil como uma questão rodeada por tabus que são agravados ainda mais pelo estigma que vem com a criminalização, tudo isso faz com que os debates em torno do tema sejam, muitas vezes, entendidos a partir de uma perspectiva moral que, de alguma maneira, coloca obstáculos ao debate sério sobre aborto e sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mobilizando tensões a respeito do tema como se fosse uma questão de contra ou a favor, certo ou errado. O aborto é uma questão de saúde, e precisa ser debatido nos termos corretos de saúde pública para conseguimos avançar de forma adequada nesse debate.
EC – É legítimo que o Estado interfira? O STF é o foro apropriado?
Débora – Sim, o STF é o espaço adequado para essa discussão. A ação que está em curso no STF denuncia a inadequação dos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto diante da Constituição Federal, e propõe que seja feita a revisão desses artigos já que violam uma série de direitos fundamentais das mulheres como o direito à liberdade, à dignidade, à autonomia, à cidadania, entre outros. A reinterpretação de leis anteriores à Constituição, como é o caso do Código Penal, à luz da própria Constituição e numa avaliação de direitos fundamentais, é função regular do Supremo.
EC – Qual o propósito da ADPF 442 apresentada pelo PSol e pela Anis?
Débora – O que a ADPF 442 propõe é que aborto deixe de ser tema de prisão e que as milhares de mulheres que passam por essa experiência todos os anos não sejam consideradas criminosas. O nosso entendimento, que é baseado em um entendimento internacional mais amplo, é de que o aborto é um assunto de saúde e, portanto, precisa ser tratado como tal. Nós temos uma série de pesquisas que mostram isso e que mostram que as mulheres fazem aborto, uma em cada cinco até os 40 anos, são mulheres comuns com religião e filhos, e a pergunta que fazemos nessa ação é: todas essas mulheres deveriam ser tratadas como criminosas? Com as audiências no STF, diversas comunidades médicas que compareceram e participaram dos debates, apresentaram evidências sobre segurança de saúde que nos mostram que a questão seria melhor tratada se fosse considerada a partir da perspectiva da saúde. É óbvio que outros argumentos são também válidos e foram, inclusive, contemplados e ouvidos pelo STF no momento das audiências, e devemos ter todo o respeito às comunidades de fé, mas direito e questões constitucionais devem vir sempre amparados em evidências.
EC – O que a proibição do aborto representa em termos de saúde pública
Débora – Criminalizar o aborto representa que estamos fracassando enquanto Estado no cuidado e atenção à saúde e aos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, só em 2015 meio milhão de mulheres arriscaram suas vidas e saúde em procedimentos clandestinos. De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 2008 e 2017, o SUS gastou R$ 500 milhões com internações por complicações por abortos inseguros. Criminalizar é ignorar essa situação, é colocar no escuro todas essas mulheres que necessitam do acolhimento adequado dos serviços de saúde. E ainda mais grave, é esquecer mulheres como Ingriane Barbosa, mulher jovem que morreu precocemente com um talo de mamona no útero, deixando três filhos órfãos.
EC – As mulheres brasileiras sabem que o aborto no Brasil é crime?
Débora – Eu diria que não há clareza sobre isso entre a maioria das mulheres brasileiras. Elas veem como algo errado, algo que não deveriam fazer, sabem que não podem procurar o serviço de saúde, sabem que não podem compartilhar sua dor com familiares, amigos e conhecidos pelos inúmeros tabus e estigmas que acompanham o tema, mas a maioria não entende aborto como um crime de cadeia.
EC – O que significa aborto seguro?
Débora – Aborto seguro é o aborto realizado com a orientação adequada de um profissional de saúde capacitado utilizando dos melhores métodos para cada idade gestacional. Quando realizado dessa maneira, o aborto é um procedimento muito seguro sendo, inclusive, mais seguro que um parto.
EC – Por que as mulheres abortam?
Débora – As razões podem ser muitas e bastante diversas, as experiências são singulares e acredito que somente cada mulher em sua individualidade pode avaliar se consegue ou não seguir até o fim com uma gestação, mas o que podemos observar é que o debate sobre métodos contraceptivos e educação sexual integral, aspectos essenciais para pensarmos a prevenção de gestações indesejadas, ainda precisa ser fortalecido por aqui. O que sabemos, por exemplo, é que os métodos falham e falta acesso à informação sobre métodos contraceptivos: quais os diferentes métodos existentes hoje no serviço de saúde? Como usá-los corretamente? Grande parte das mulheres brasileiras não tem acesso a essas informações. Há ainda deficiência no acesso a contraceptivos modernos e diversos e a serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade. Outra questão é que muitas mulheres não conseguem negociar o uso de preservativos com os homens que, em geral, não se responsabilizam também pelos processos reprodutivos e pelo planejamento familiar. E além de tudo isso, ainda existem mulheres que são vítimas de violência dentro de seus relacionamentos, dentro de suas casas.
EC – Por que é importante diferenciar as expressões “fazer” e “passar” por aborto?
Débora – Essa é uma questão metodológica importante. A pergunta feita às mulheres pela Pesquisa Nacional do Aborto foi “você já fez um aborto?” por uma razão clara. Feita desta maneira, a pergunta não deixa possibilidade para que o aborto espontâneo seja considerado pelas mulheres entrevistadas, já que, em geral, as mulheres quando falam de aborto espontâneo falam que já passaram por um aborto ou ainda dizem que “perderam”. Então, elas usam os verbos “perder” ou “passar” quando falam em abortos espontâneos, “fazer” e “tirar” são os verbos das mulheres que causam o aborto e trazem associação imediata com o aborto provocado, o que tira do radar os abortos espontâneos.
EC – As pesquisas de opinião sobre o aborto em geral são válidas para embasar o debate?
Débora – A problemática das pesquisas de opinião, sobretudo, das pesquisas sobre temas controversos como é o aborto, vem da atenção metodológica que devemos ter na hora de realizarmos as perguntas. Que perguntas iremos fazer e como devemos fazê-las? O primeiro erro é que existe uma expectativa moral clara de resposta correta quando há alguém te inquirindo sobre um tema como aborto, isso altera respostas e resultados. O segundo erro que geralmente é cometido nas pesquisas de opinião com as quais nos deparamos está na pergunta, e esse ponto é fundamental. Se queremos de fato pensar na questão do aborto de forma séria, a partir de evidências e dados confiáveis, a pergunta não pode ser se somos contra ou a favor do aborto. O que nós precisamos saber para entender e atuar sobre uma questão como essa, são práticas. O que precisamos saber é qual é a realidade do aborto no Brasil. Mas além disso, se quisermos insistir nas pesquisas de opinião, a pergunta correta seria se o aborto deve ser uma política criminal, ou seja, se as mulheres devem ou não ser presas por realizarem um aborto.
EC – Qual a metodologia utilizada e o que evidencia a Pesquisa Nacional do Aborto?
Débora – São dois estudos diferentes, mas complementares: a Pesquisa Nacional do Aborto de 2010 e a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016. Em ambos os estudos a metodologia utilizada consistiu na combinação de um questionário baseado na técnica de urna e entrevistas face-a-face para que as mulheres respondessem a um outro questionário. Como funcionou a pesquisa? Entregamos às entrevistadas um questionário em papel com perguntas sobre o assunto que deveria ser respondido pelas próprias entrevistadas e depositado em uma urna lacrada, sem que as entrevistadoras tivessem conhecimento das respostas. Com esse tipo de técnica, conseguimos assegurar não apenas o sigilo das respostas, mas também a percepção de sigilo, que tende a aumentar as respostas verdadeiras das entrevistadas. Após o preenchimento do questionário para a urna, um questionário face-a-face foi realizado com cada entrevistada com perguntas gerais, aplicado com uso de tablets. Os questionários de urna continham um identificador codificado que permitiu, posteriormente, a combinação de ambos os instrumentos sem prejuízo do sigilo e confidencialidade. O que os resultados indicam é que o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões.
EC – São mulheres comuns…
Débora – Sim, elas são mulheres comuns. A Pesquisa Nacional do Aborto nos mostra que este é o perfil da mulher que aborta no Brasil: 67% têm filhos, 88% declaram ter religião, sendo que 56% são católicas, 25% evangélicas ou protestantes e 7% professam outras religiões.
EC – Por que Ingriane Barbosa se tornou uma referência na luta pelo aborto legal?
Débora – Ingriane Barbosa era uma mulher jovem de 30 anos, mãe de três filhos, que trabalhava como babá. Ela morreu há poucos meses porque tentou realizar um aborto introduzindo um talo de mamona no útero, morreu porque aborto é crime no Brasil. Ingriane é uma mulher concreta, mãe e jovem, que sofreu de forma cruel por não poder procurar o sistema de saúde sem ser perseguida.
EC – O que ocorreria se todas as mulheres que fizeram aborto fossem presas?
Débora – Considerando toda a população feminina entre 18 e 39 anos no Brasil, 4,7 milhões de mulheres já fizeram aborto ao menos uma vez na vida. É ainda estimado que entre essas mulheres, 3 milhões tenham filhos. Se a lei penal fosse cumprida à risca haveria hoje 3 milhões de famílias cujas mães já teriam estado ou estariam presas por aborto. Imagine o impacto disso em todas essas famílias. Além disso, prender todas essas mulheres significaria decuplicar o sistema prisional e sufocar o judiciário por décadas.
Por Gilson Camargo