A melhor parte de um protesto ou manifestação é testemunhar a criatividade das pessoas ao expressar os motivos que as levaram até lá: os cartazes! No aniversário da Marcha das Mulheres este sábado (20), pude ver aqui em Los Angeles a diferença entre o que motivou as pessoas na Marcha das Mulheres de 2017 e o que as levou às ruas este fim de semana.
“Ainda estamos aqui” foi uma das declarações mais óbvias de resistência ao estado atual da política e da sociedade. Mas, porque as coisas mudam, apesar dos insistentes ataques que continuam existindo ao nosso feminismo diário, também vimos cartazes diferentes: “Construir o Muro, sim – entre Igreja e Estado”, “Nós somos TODAS as mulheres, pessoas trans, imigrantes, LGBTQIA, mulheres negras, pessoas de cor etc.”, “Saúde é um Direito Humano”, “Homens serão Seres Humanos” e “O Patriarcado não vai implodir por si mesmo”.
Em um ano, manifestantes nos Estados Unidos mudaram seus cartazes de “O Presidente não me representa” para declarações sobre as condições em que vivemos hoje de opressão – e que aliás vem se construindo há décadas pelo neoliberalismo conservador e racista que investe em levantar e consolidar barreiras ao feminismo e aos direitos humanos de todas as pessoas— e que tem de mudar. Desta vez, não voltamos às ruas para exigir o direito ao voto. Isso nossas avós e bisavós conseguiram na virada do século XIX. Agora, queremos tornar explícito que, ao votar, esperamos que nosso voto conte, que nossa voz seja ouvida e que nossas plataformas sejam levadas a sério. Manifestantes não levantam ao amanhecer do dia no fim de semana para enfrentar filas no metrô, caminhar vários quilômetros e aguentar um clima inóspito só por farra. Será que fazemos isso para absorver a energia coletiva que circula entre manifestantes que, como nós, acreditam que a busca da justiça e da felicidade vale esse esforço? Sem dúvida! Porém, seria mais completo dizer que fazemos isso para demonstrar a seriedade com a qual dizemos com nossos cartazes “Já Basta” e como o nosso movimento por “Direitos, Justiça e Democracia de fato” é poderoso.
As sufragistas não pararam de se manifestar até conseguirem o direito ao voto e até que se tornasse normal e até esperado que as mulheres votassem. E, em meio a esse processo, lutamos pela anticoncepção, por mulheres nas universidades na política e nos governos. Sabemos que ainda hoje aqueles que lamentam as conquistas das sufragistas e o voto feminino são os mesmos que tentam reverter o processo e enrolar o fio da história de volta a seu carretel. Quando ocupam posições de poder, essas pessoas ou instituições tentarão reescrever a narrativa, recontar os fatos e reconstruir as barreiras, muros e fissuras entre as pessoas diferentes e certos direitos e benefícios sociais e científicos que a humanidade acumulou ao longo dos anos.
Portanto marchamos. Nós marchamos e nos manifestamos porque sabemos que temos que exigir nosso direito aos ganhos conquistados, às leis já reconhecidas a demandar mais direitos e à nossa própria narrativa.
E também porque devemos resistir aos contra-ataques que visam tratar direitos de todos como privilégios de alguns.
É evidente que estamos cansadas de protestar contra a mesma m&rd@ de sempre e sentimos medo de que nada realmente esteja mudando. Afinal, por que mais uma manifestação haveria de mudar alguma coisa?
Mas era exatamente isso que temíamos antes do movimento do #EuTambém (#MeToo) desabrochar, quando continuávamos nos perguntando: De que adianta quebrar o silêncio? Por que aguentar mais uma humilhação se o poder está do outro lado? E aqui devemos puxar pela memória e recorrer à solidariedade, lembrando a todxs e a nós mesmxs que é assim que a transformação opera. Devemos lembrar do momento em que um milionário âncora de uma agência de notícias ou o produtor de Hollywood ou o senador, ou candidato a governador, ou executivo é finalmente removido do poder por conta de mais uma voz entre tantas que ousou sair do silêncio. Pois essa é a transformação que importa.
Creio que, acima de tudo, o que as indústrias e mercados, instituições e governos querem é manter seus negócios em movimento, gerando recursos e lucros. Aliás, isso é mais importante do que sua vontade de proteger um dos seus como geralmente fazem. No entanto, consumidorxs, eleitorxs, jovens profissionais, sindicalistas, estudantes, todxs parecem estar prontxs para usar seus gorros rosa-choque a qualquer hora. Basta um olhar pela janela ou na tela da televisão ou celular neste fim de semana para que uma pessoa que entenda um pouco de mercado e de negócios conclua que se multidões de pessoas estão saindo para as ruas de novo, é melhor prestar atenção.
O tempo em que o poder advinha da combinação de privilégio e biologia está chegando ao fim e continuará desabando porque as pessoas de chapeuzinho cor-de-rosa exigem justiça.
Magaly Marques é uma feminista brasileira que divide seu tempo entre Los Angeles e São Paulo, atuando como consultora em saúde e direitos reprodutivos, educação sexual e estratégias institucionais de diversidade e inclusão. Sua experiência profissional inclui cargos de direção no Promundo-US, Planned Parenthood em Los Angeles, IPPF e Fundação MacArthur. Magaly completou pós-graduação em Filosofia na PUC-SP, em que lecionou por algum tempo. Tem publicado vários artigos sobre questões contemporâneas de relações de gênero, direitos reprodutivos e masculinidades e atua como conselheira para ONGs no Brasil e nos Estados Unidos.