(Rede Brasil Atual, 13/07/2016) A juventude que ocupa as ruas e as redes recicla o feminismo e avisa aos machistas, de ontem e de amanhã: sem igualdade e respeito não haverá democracia, nem paz
Era mais um dia de protestos para pedir a saída do então presidente da Câmara dos Deputados. Na ocasião, o “Fora Cunha” estava explosivo entre mulheres, sobretudo jovens, indignadas com a agenda do peemedebista. Ele só viria a ser afastado pelo Supremo Tribunal Federal seis meses depois. Não por bancar projetos como o que proíbe o uso de pílula do dia seguinte por vítimas de estupro ou o que institui o Dia do Orgulho Hétero. Não foi o atraso civilizatório que o derrubou, mas a corrupção – e não sem antes liderar o afastamento da primeira mulher eleita presidenta da República. Foi naquela tarde de novembro que a produtora Beatriz Alonso, de 24 anos, tomou pela primeira vez contato com os secundaristas que ocupavam a escola Fernão Dias Paes, na zona oeste de São Paulo, contra o fechamento de escolas públicas pelo governo do estado.
“A escola estava ocupada havia três dias. Fui aluna de escola pública e sei do que aquela moçada estava falando. Fiquei entusiasmada com a organização e encantada com a bravura das meninas. Numa sociedade em que há pouco espaço para as vozes femininas, até nos movimentos e na política, aquilo me tocou”, lembra Beatriz. O cenário a inspirou a produzir, junto com o namorado, Flávio Colombini, o documentário Lute como uma Menina, título tirado de um chamado que se espalhava nas redes sociais. “Foi impressionante deparar com o nível de consciência e politização daquelas meninas. As adolescentes têm muito mais restrição à liberdade desde de dentro de casa. Cresci e amadureci com elas.” O filme, ainda não lançado, reúne imagens dos movimentos e depoimentos de 33 estudantes de 12 escolas estaduais, todas mulheres, de 15 a 18 anos.
Uma delas é Lilith Cristina Passos Moreira, 15 anos. Ela teve contato com o feminismo em redes sociais. Passou a prestar atenção aos papéis feminino e masculino e apresentou um trabalho escolar que inicialmente nem entraria na questão. “Comecei a ouvir opiniões e fiquei inconformada com o pensamento de um entrevistado que iria compor a minha apresentação. E me dei conta do machismo”, conta.
Participar da ocupação da escola Maria José, na Bela Vista (bairro da região central de São Paulo), durante um mês, foi importante para aprimorar sua percepção. “Durante o movimento escancarou-se o processo de opressão existente sobre os estudantes de escolas públicas, mais ainda quando se trata de mulheres negras”, diz Lilith. “Por isso, foi muito natural que as meninas tenham liderado as ocupações. Formou-se uma unidade entre as mulheres, que logo montaram um coletivo para continuar discutindo e atuando.”
Na ocupação, ela lembra, a primeira polêmica surgiu na divisão do trabalho. Em uma assembleia, um dos participantes sugeriu que as meninas ficassem na cozinha. “Pra quê…” Após conversarem, criaram cotas para as comissões de alimentação e segurança, o que garantiu participação equilibrada nas atividades. “Foi um processo como eu acredito que deva acontecer para construir uma nova sociedade, mais livre”, afirma. Para ela, o mais difícil tem sido lidar com a conduta de alguns educadores que não levam o assunto a sério. Lilith cita o exemplo de um professor de História que em sala de aula considerou “vitimizador” o tema da violência contra as mulheres na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Na estrutura social e na cena política, observa Beatriz, não é novidade a mulher ser inferiorizada. “Está aí o interino que baniu as mulheres dos postos importantes do governo”, comenta. O que é novidade, em sua avaliação, é que esse estopim feminino já característico dos movimentos e dessa nova geração que vai às ruas está se expandindo para ambientes não engajados. “Vejo mudanças na minha casa, com a divisão de tarefas. E no meu trabalho, com mulheres tomando a frente e se fazendo ouvir. Vejo amigos admitindo que determinados gestos e condutas deles são machistas.”
Instrumento de peso
A socióloga Verônica Borges é um exemplo de mulher que se faz ouvir. Foi a primeira a tocar na bateria da Nenê de Vila Matilde, em 2012, quando a escola de samba paulistana já tinha 63 anos de existência. A ritmista mergulhou no movimento de mulheres do samba. Aos 31 anos, após uma década de carnaval e seis anos em rodas, toca surdo em quatro grupos e luta para ser musicista profissional. “Até hoje a participação de mulheres em baterias de escolas é limitada a instrumentos leves por causa do preconceito, mas hoje tem muita gente se reunindo para criar espaços femininos”, afirma.
Na primeira vez em que “vestiu” o surdo, pensou que ia cair. “É questão de ritmo e treinamento. Você vê as mulheres que dançam nas rodas de samba, é puro ritmo. Se colocar um instrumento leve ou pesado nas mãos delas certamente aprenderão”, acredita Verônica. A inspiração vem de um lugar importante surgido recentemente em São Paulo, o Samba da Elis. Ao ar livre, na Praça Elis Regina, bairro do Butantã, na zona sul, o projeto reúne mensalmente pelo menos dois grupos formados exclusivamente por mulheres. “Lá também atuam vários coletivos que conversam sobre temas ligados ao feminismo.”
Mais do que as ruas, as redes sociais se tornaram focos de “reuniões” e discussões. Para a secundarista Luísa Segalla, aluna do Colégio Equipe, as redes sociais e o ambiente escolar foram determinantes para sua percepção crítica da cultura machista. “Quando eu entrei no ensino médio comecei a me incomodar fortemente com isso. Procurei informações, li muito, entrei em grupos no Facebook e passei a entender melhor o que era o feminismo e o quanto é importante”, diz.
“É muito complicado ser bombardeada pela mídia machista, que expõe e ‘objetifica’ as mulheres, perceber a diferença na criação entre meninos e meninas, andar na rua sempre insegura. Eu acho crucial querer desconstruir esse ciclo”, afirma Luísa, moradora da Casa Verde, na zona norte paulistana. Porém, ela observa que muitas vezes as pessoas não estão dispostas a ouvir. “O feminismo não está aqui para ser confortável. Assim como todas as lutas contra um sistema, vai incomodar. Ser feminista é começar as mudanças no espaço do microcosmo, como na sua casa e escola, e se possível, abranger o macro”, defende.
E quem não aprende na escola aprende na vida. Foi em casa que a jornalista Semayat Silva e Oliveira, de 27 anos, do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, recebeu desde criança informação e impulso de mãe sobre a necessidade de se defender do racismo e do machismo. Moradoras do Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo, elas sempre souberam das dificuldades das mulheres negras na região. “Minha mãe fez questão de me proteger desde a infância. Também me orientou desde cedo a evitar relacionamentos abusivos que pudessem surgir.”
Semayat foi crescendo e passou a questionar por que a liberdade feminina é tão limitada. A família se formou no ensino superior toda ao mesmo tempo, como bolsista do ProUni: pai, mãe, irmã e ela. “Além da limitação geográfica, com pouco acesso a direitos, também existe a tripla jornada que a maioria das mulheres negras e pobres administra. Isso te empurra para o feminismo, a necessidade de bancar a casa, de ir à luta, de estudar ao mesmo tempo, de buscar segurança no lugar onde moramos, que é extremamente vulnerável e não tem a proteção do Estado.”
A partir de um artigo escrito a seis mãos por jornalistas de várias regiões periféricas e publicado por um grande veículo sobre essas dificuldades, surgiu a ideia de formar um coletivo e editar um blog que abordasse a vida das mulheres da periferia. O grupo é composto por sete mulheres de bairros diversos, duas casadas, uma mãe e outras que moram com os pais. “O nosso feminismo começa na escuta, é a partir da reflexão que identificamos a nossa potência. Nessa condição em que vivemos, é raro uma pessoa ter oportunidade de refletir sobre sua própria história. Nosso objetivo é dar voz para as mulheres da periferia, que são múltiplas, plurais”, diz Semayat.
Apesar de ser um ambiente dirigido por intelectuais e supostamente mais libertário, o meio cultural reproduz os valores machistas. A musicista e sonoplasta Jéssica Soares Martins de Melo, 27 anos, constata em sua área que nove em cada dez vagas para sonoplastia no teatro são ocupadas por homens. “Ninguém pensa em contratar uma mulher para essa função. Nós ficamos com as sobras, embora haja muitas mulheres capazes de executar o trabalho com a mesma competência”, afirma.
Aos 8 anos, Jéssica ganhou um sutiã de seus familiares quando perceberam que ela brincava na rua sem camiseta nos dias de calor, como faziam os meninos. “Eu não entendi o sentido daquilo (de ganhar um sutiã aos 8 anos), mas nunca esqueci. Depois entendi: era machismo. Já no mercado de trabalho, sempre questionei muito as pessoas sobre o motivo por que eu trabalhava na mesma função de homens que ganhavam mais que o dobro do meu salário.”
Jéssica participa de coletivos feministas do teatro. E aposta no diálogo com as pessoas de sua convivência para que essa situação mude. “Se eu estou em casa com meu pai, tradicionalmente tenho de lavar a louça, fazer a comida. Acho muito estranho que um adulto como ele não possa se nutrir sozinho. Eu falo sobre isso, com calma, pois sei que é de outra geração, na esperança de que um dia seja diferente.”
O poder em jogo
A MC Karol de Souza, de 34 anos, decidiu iniciar carreira no rap, apesar de consciente de que é uma cena predominantemente masculina e machista. Começou em 1995, no bairro onde morava, em Curitiba, e já naquela época montou um grupo de meninas que se chamava Garotas de Atitude. Há cinco anos morando em São Paulo, começou a cantar com a rapper Flora Matos e decidiu iniciar carreira solo. Ela participa de três projetos coletivos de mulheres MC’s: o Divas do Hip Hop, uma banda só de mulheres, o Minas do Rap, constituído por MC’s de São Paulo, Curitiba, Recife e Rio de Janeiro, e o Rimas e Melodias, que tem duas MC’s cantoras e outras duas que só rimam.
Karol admite que se coloca em uma redoma para evitar ser ofendida e usa a inteligência para sobreviver no meio. “Quando a gente lança um disco, alguns produtores nos chamam pra cantar porque querem ‘nos pegar’”, revela. “Sou de uma família na qual as mulheres lideraram normalmente. Meu pai se separou da minha mãe, meu avô se separou da minha avó, e as mulheres sempre foram mais bem-sucedidas do que os homens. Agora que tenho um irmão mais novo, percebo o machismo de volta nas pequenas coisas cotidianas. O menino é tratado como bibelô da família”, observa.
Para a secretária de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo, Denise Motta Dau, a expansão das causas feministas é fruto, em parte, dos avanços democráticos dos últimos anos, e também resultado de uma resistência da sociedade ao conservadorismo que reage a esses avanços. Ela observa uma geração que nasceu ou era muito criança no início dos anos 2000 e se formou na última década e meia. “As lutas das mulheres em diferentes movimentos e setores da sociedade proporcionaram avanços. O Estado, por sua vez, também garantiu políticas de distribuição de renda e maior participação feminina. Muitos direitos conquistados já estão internalizados por uma parcela da população, sobretudo a juventude, que nasceu e cresceu em um processo democrático, e não aceita presenciar um retrocesso no seu cotidiano”, afirma.
Em contrapartida, na avaliação de Denise, o conservadorismo também reagiu. “Se por um lado presenciamos o feminismo se tornar mais atuante e dar voz e força às mulheres, por outro corre-se o risco de se perder, inclusive, importantes direitos conquistados”, diz, referindo-se ao que chama de “golpe em curso”, ao lembrar que todas as políticas de direitos humanos foram suspensas pelo governo interino de Michel Temer e que nos estados e no Congresso proliferam projetos que promovem um atraso civilizatório no país, como os que defendem a “lei da mordaça” aos educadores e a discussão sobre diversidade de gênero pelas escolas. “O questionamento contundente ao machismo, social e culturalmente construído, faz surgirem reações conservadoras.”
A secretária considera que diversas ações que ganharam “as ruas e as redes” desde o ano passado já são uma forma de resistência. “Campanhas como #chegadefiufiu, #primeiroassédio, #meuamigosecreto,#agoraéquesãoelas, as manifestações das secundaristas, as respostas ao caso de estupro no Rio, fizeram com que a discussão sobre violência de gênero e desigualdade se tornasse tema do dia a dia, e não mais restrita ao ambiente acadêmico e aos movimentos”, lembra Denise. “Temas como preconceito, assédio, desigualdade, racismo, misoginia e feminicídio são hoje realidade quando se trata de enfrentamento das violências que as mulheres sofrem cotidianamente em suas casas, nas ruas, na escola, no trabalho e na política.”
Rose Silva. Colaborou Cláudia Motta
Acesse no site de origem: Lute como uma menina. Ameaças de retrocessos dão gás ao feminismo (Rede Brasil Atual, 13/07/2016)