‘Machismo e homofobia são heranças da colonização’, diz primeira mulher indígena a cursar doutorado na UFMG

09 de agosto, 2019

Célia Xakriabá é também a primeira integrante do povo Xakriabá a concluir um mestrado. Ela será uma das participantes da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, que acontece em Brasília na próxima terça-feira, dia 13

(O Globo, 09/08/2019 – acesse no site de origem)

Ela é a primeira integrante do povo Xakriabá a concluir um mestrado. É também a única indígena a cursar doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — estuda Antropologia. Célia Xakriabá, de 30 anos, está entre as cerca de 2 mil mulheres que vão nesta sexta-feira, dia 9, para Brasília com o objetivo de participar da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas.

A marcha em si está marcada para a próxima terça-feira, 13, mas já nesta sexta, que é Dia Internacional dos Povos Indígenas, é iniciado um fórum de discussões — que vai até dia 12, véspera da manifestação — no qual serão debatidos temas como defesa dos territórios indígenas, direitos das mulheres e homofobia.

Confira abaixo a entrevista de Célia à CELINA.

Você é a primeira Xakriabá a ter mestrado e é a primeira indígena no doutorado da UFMG. Como avalia esse pioneirismo?

Ser a primeira não é ser a mais importante. Ser a primeira me dá a responsabilidade redobrada de não deixar que eu seja a última. As mulheres indígenas estão hoje ocupando mais e mais espaços. E isso é fundamental. Se não existir espaço para nós, vamos criar nosso espaço.

O tema da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas é  “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Como é a relação entre território e corpo para você?

O território é todo o conjunto que nos pertence. O corpo é o primeiro território. E os corpos indígenas precisam ser respeitados. É uma reafirmação da identidade e da cultura. O principal objetivo da marcha é reafirmar a garantia não apenas da nossa vida, mas do nosso modo de vida. Nós morremos não só quando nossa vida é tirada, mas morremos coletivamente também quando se mata a nossa identidade. Não dá para pensar em povo indígena sem essa conexão profunda com o território, que é nossa morada coletiva.

A violência de gênero é uma preocupação para as mulheres indígenas?

Nós, mulheres indígenas, temos trazido isso à tona principalmente porque é preciso compreender que nenhum tipo de violência pode ser camuflada porque se trataria de algo cultural. Acreditamos que não se pode perpetuar violência sob o pretexto de ser cultura, tradição. Existe uma diversidade imensa de povos indígenas, cada um com sua cultura, e é preciso entender cada uma, mas lutamos para combater aspectos de violência nelas. Nenhuma forma de violência pode ser justificada como algo cultural.

A Lei Maria da Penha funciona para as indígenas?

A lei é importante principalmente no contexto urbano. Fora dele, não a acessamos. No contexto mais geral do que nós conhecemos, as mulheres indígenas não têm acesso a esse suporte. A Lei Maria da Penha não funciona para nós.

Você identifica a existência de machismo em alguns povos indígenas?

O machismo é herança do processo de colonização. Não digo nem que é de matriz colonizadora, mas de “patriz” colonizadora, porque vem do patriarcado. Mas, claro, existem sociedades indígenas patriarcais, e existem sociedades indígenas matriarcais. Só que, mesmo nas patriarcais, as lideranças masculinas esperam para dar as respostas sobre decisões importantes depois de falar com as mulheres. Isso é interessante.

A gente não pode dizer que nas sociedades indígenas não existe o machismo. Ele se faz presente hoje, mas é importante se perguntar: de onde ele veio? Não só o machismo, mas a homofobia. O preconceito existe hoje dentro de povos indígenas, mas de onde ele veio? Há registros muito antigos de relações entre pessoas do mesmo sexo nos povos indígenas. Séculos atrás não era um problema, mas agora é. Por isso que associamos ao processo de colonização. Vemos a afirmação contra o machismo e a homofobia como um processo de descolonização. E esse processo não pode ser parcial. Temos que ir até o fim.

Existe feminismo indígena?

É uma discussão muito complexa. No chamado da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, a gente quer muito discutir isso. Nunca ouvi, por exemplo, uma mulher mais velha se definir como feminista indígena. E, como nós temos um senso de coletividade muito grande, se um dia eu falar que sou feminista, eu preciso estar acordada com meu coletivo, com as outras mulheres indígenas. Para nós, muito mais importante do que o conceito é a prática. A 1ª Marcha se apresenta como um movimento para estimular a aliança urgente com outros movimentos.

Você usa o seu corpo como forma de protesto, com pintura corporal?

Sim, uso como forma de manifestação política. A pintura é uma pele que nos dá a presença da ancestralidade. É uma forma de eu me sentir mais próxima dos meus ancestrais, porque quem pinta o corpo pinta também a alma. Não existe pintura sem ritual, nem ritual sem pintura. Mesmo o processo de colocar a pintura no corpo já é um ritual. Desde os 13 anos eu participo do movimento indígena e faço manifestações com pintura corporal. É uma forma de me reafirmar politicamente, de reafirmar minha existência enquanto indígena. E esses são os dois elementos mais fortes da nossa cultura: a pintura e o cocar. Durante a minha graduação em Ciências Sociais, por exemplo, há uns dez anos, eu já ficava o tempo todo me reafirmando politicamente, usando com frequência a pintura e o cocar. Muitos dizem “por que você não faz tatuagem também, que dura para a vida inteira?”. Mas aí não é conexão com a espiritualidade, é outra coisa. Por isso é muito significativo para mim continuar demarcando esse espaço, não para outras pessoas enxergarem como mais ou menos indígena, mas é para que eu entenda de onde venho e por onde transito.

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