Mães levantam bandeira e transicionam junto em jornada de filhas trans e travesti

10 de maio, 2020

Janaína e Sydia são apoio e quebram regra de abandono comum para mulheres como suas filhas

(Folha de S.Paulo, 10/05/2020 – acesse no site de origem)

Saindo de uma consulta no posto de saúde do bairro da Várzea, no Recife, Sydia Fernandes, 53, e a filha Ana Flor, 24, foram abordadas por um senhor que carregava uma Bíblia debaixo do braço. O homem, que elas nunca tinham visto antes, insistia em tratar Ana Flor no
masculino.

“Minha mãe não teve demora, tomou a frente e me defendeu. Perguntou qual era o problema dele”, diz ela. “Ah, mulher, quer me ver virar uma leoa é tratar minha filha mal”, conta Sydia. “Quase que engulo esse homem. Ana Flor é só orgulho para mim”.

Ana Flor se identifica como travesti há cerca de cinco anos. Ela não fez anúncio sobre a transição, foi construindo aos poucos sua identidade, com o apoio e a presença constante da mãe e de outras mulheres da família.

Janaína Carneiro, 47, mãe de Taya Carneiro, 27, preferiu se afastar de pessoas da família pelo cansaço, quando percebeu que a atitude de não chamar a filha pelo gênero com o qual ela se identifica era uma decisão, não só força do hábito.

Taya também começou a transição há cerca de cinco anos. Janaína diz que o processo da filha, também foi dela, que deixou de ser mãe de uma pessoa cisgênero e passou a ser mãe de uma mulher transgênero.

“Você tem que ser mais forte, tem que entender que as pessoas ainda não entenderam, que talvez elas nunca entendam, que você sempre vai ter que estar ensinando”, explica ela. “Tem que sempre, sempre, o tempo inteiro, levantar bandeira. É muito difícil você ser mãe de uma mulher trans e não ser ativista”.

As histórias delas, de mães que ficam ao lado das filhas e filhos trans ou travestis em suas transições, costumam ser exceção. Expulsão de casa, distanciamento de familiares e amigos ainda é a tônica para muitas pessoas LGBTI no país.

Dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e do Datasus (Sistema de Informações sobre Mortalidade) compilados pelo Mapa da Violência de Gênero do site Gênero e Número, mostram que 49% das agressões contra trans e travestis ocorreu dentro de casa entre 2014 e 2017 no Brasil.

Taya, natural de Brasília, comunicadora e mestranda na Inglaterra, chegou com a notícia que começaria o tratamento hormonal para a transição na época que a mãe estava com uma suspeita de câncer de mama. E veio então o medo.

“Ela ficou com medo por riscos na saúde, pelo meu futuro, por emprego. Os mesmos medos que eu tinha, mas não falava, porque não podia demonstrar. Se eu demonstrasse, as pessoas iam me atacar mais ainda”, lembra.

A mãe, porém, diz que hoje entendeu que o medo era também uma forma de disfarçar o próprio preconceito. Uma forma de se refugiar, em meio a um processo que não ocorre do dia para a noite.

“Durante o processo, você vê a pessoa que você mais ama sofrendo, o tempo inteiro. Olhares, discriminação, você vivencia aquilo com a pessoa e fica pensando por que ela está passando por aquilo”, conta. “Esses temores todos estão muito enraizados, porque você faz projeções, você tem expectativas”.

Sydia também passou a sentir medo por Ana Flor, estudante de Pedagogia na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), e o mundo que ela encontraria cada vez que saísse de casa. Diz que passou a perguntar mais onde ela ia e com quem.

“A gente sabe que as pessoas do mundo são violentas. Isso me preocupava muito, porque dentro de casa eu sei que ela estava protegida por mim, pelas irmãs, pela avó”.

Logo no começo da transição de Ana Flor, (a mãe chegou em casa com o primeiro presente para a filha: um sutiã preto, de tecido fino. Flor não sabia como fechá-lo e Sydia veio em socorro. Mãe de outras duas mulheres, ela diz que comprou a peça porque é isso que mães fazem pelas filhas.

“Acho que foi um momento muito da gente”, diz Ana Flor. “Minha mãe sempre esteve ao meu lado, comprou roupas para mim e isso é muito importante, porque não é só a roupa é o que presentear você com roupas ditas femininas significa naquele momento”.

Na infância, Taya aguentou outras crianças que vinham apertar o interfone para gritar “viadinho”. Mais tarde, a admiração dela pela modelo Léa-T chamou a atenção do companheiro da mãe. Apesar do receio no início, Janaína passou a ler sobre transgeneralidade, inclusive nos trabalhos da própria filha, e passou a entendê-la melhor.

“Minha relação com ela também tem um nível de intelectualidade, que eu consigo me conectar com ela por um lado que ela me compreende 100%”, diz Taya. “Eu tenho amigas que não conseguem ter relação com as mães. A minha ex mesmo, a mãe não se interessa em entender de jeito nenhum”.

1,9%

é a estimativa de participação de pessoas trans no total da população brasileira

210 milhões

é o total de habitantes do Brasil

76,3 anos

é a expectativa de vida da população brasileira

124 casos

de assassinatos contra trans foram registrados em 2019 no país

0,2%

é a participação de estudantes trans nas universidades federais
brasileiras

Fonte: Antra, Andifes e IBGE

 

Janaína, que enfrentou a depressão, diz que via sinais semelhantes na filha e achava que era apenas isso também. Mãe jovem, aos 20 anos, ela conta que as duas sempre foram melhores amigas.

“Eu acho ela muito mais feliz agora. Quando ela se externa como mulher, ela flui. É natural, não é forçado, ela é fluida dentro do gênero feminino”, diz ela.

A transição da gaúcha Ágata Mostardeiro, 26, foi conturbada, com conflitos familiares e amigos que se afastaram. De apoio, ficaram a mãe Maristela e a esposa, Chaiane. Em 2018, ela se tornou mãe —a história sobre os problemas para registrar o filho foi contada na Folha.
(https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/mae-trans-e-impedida-de-registrar-filho-biologico-em-cartorio-nors.shtml)

“Depois que o Bento chegou, a gente se aproximou mais”, conta ela que tem a mãe como referência quando olha para o filho. “Acho que ser mãe é se dedicar ao máximo para ver teu filho ou tua filha crescerem bem. Sempre vi minha mãe correndo muito para me dar o melhor”.

Os tempos talvez mostrem pequenos avanços para o reconhecimento de pessoas trans e travestis. Janaina acredita que, há dez anos, a transição da filha poderia não ter ocorrido, ficaria como um desejo. “Ela conseguiu porque teve suporte no tempo e na história para poder fazer”, avalia ela.

Ana Flor diz que não sabe como seria a sua história se tivesse ocorrido em outra época, mas acredita que os diálogos com a mãe seriam sadios.

“Eu tenho uma família, estou no ensino superior, o afeto, o carinho e as possibilidades que a mãe me deu me proporcionaram isso”, afirma. “Mas, no Brasil, ainda se faz necessário uma longa jornada para compreender a importância de sermos todas e todos diferentes”.

Por Fernanda Canofre 

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas