Em “Manifesto Antimaternalista”, Vera Iaconelli diz que modelo que coloca mães no centro de cuidado das crianças se tornou insustentável. Qual a relação entre a queda na taxa de natalidade no Brasil e esta sobrecarga?
O cuidado materno é único, instintivo, insubstituível – e essa ideia está fazendo as mulheres adoecerem. O ideal de maternidade que mantém a responsabilidade dos filhos sobre a mulher é anacrônico e está em colapso, diagnostica a psicanalista Vera Iaconelli.
Ela partiu da escuta clínica de mulheres com quadros de depressão, ansiedade e doenças psicossomáticas – sobrecarregadas pela maternidade e a sobreposição de atribuições domésticas, profissionais e de provedoras financeiras – para a escrita de Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e políticas de reprodução, seu terceiro livro, lançado pela Zahar em setembro.
O maternalismo é um discurso que se consolidou da virada dos séculos 19 para o 20, e “se ancora na ideia de que a mulher é naturalmente talhada para ser mãe e que o cuidado que ela oferece ao filho – mas também aos familiares em geral – é insubstituível, por ser de qualidade única”, escreve Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise e colunista da Folha de S. Paulo.
Em entrevista à DW, a psicanalista considera que a perpetuação dessa mentalidade tem levado mulheres a acumular “incumbências gigantescas”, o que tem levado a adoecimentos ou mesmo ao colapso: “Na minha experiência clínica, isso se divide entre as mulheres que acham que devem melhorar para dar conta do impossível – e tem um lado narcisista investido nisso, de se sentir super-heroína – e as que se dão conta de que é uma tarefa impossível, e se ressentem por assumir um papel que não é só delas, mas não sabem sair desse jogo”.
No livro, a psicanalista explicita a construção histórico-cultural do discurso maternalista, que respondeu à necessidade de consolidar o capitalismo e viabilizar a reprodução social amparada no trabalho doméstico não-remunerado das mulheres em casa, como mães e cuidadoras.
Diante das transformações estruturais exigidas pelo século 21, escreve Iaconelli, é preciso desconstruir esta forma de pensar para corrigir as iniquidades de gênero, raça e classe que perpetua.
“Enquanto não implodirmos a categoria maternalista, que joga sobre a mulher a responsabilidade pelas próximas gerações, todas as soluções para promover a igualdade de gênero serão paliativas, e muitas vezes contraproducentes”, afirma.
Maior sobrecarga, menos filhos?
Com os índices de natalidade no Brasil em queda acentuada nas últimas décadas, a DW questiona – a sobrecarga materna pode estar dando ainda maior impulso à transformação demográfica?
Em apenas três gerações, a taxa de fecundidade das brasileiras passou de uma média de seis filhos por mulher nos anos 1960 para a média de 1,6 filhos em 2022 – a menor já registrada, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). O índice está abaixo da média global de 2,1 filhos por mulher e do nível de reposição da população.
Ao longo das décadas, a urbanização acelerada, o aumento do nível de escolaridade e o avanço das mulheres no mercado de trabalho foram determinantes para esta queda. Mas houve outra mudança crucial. “Algumas décadas atrás, uma mulher ter filhos era um valor confundido com o próprio fato de ser mulher. Hoje, não mais. Ela se sente mulher a partir de outras referências. Ter filho se tornou uma opção”, ressalta Iaconelli.