(Jornalistas Livres, 28/03/2016) Os dados são impactantes. Na produção de filmes brasileiros, cargos considerados de destaque, como direção e roteiro, têm ampla predominância masculina (74% e 65% respectivamente, segundo a última pesquisa da Ancine).
Outros dados da mesma pesquisa mostram que, além das mulheres ainda serem minoria nas funções mais valorizadas do audiovisual, elas estão mais presentes em obras de menor duração e documentários — produções de orçamento mais baixo.
Se ao recorte de gênero for acrescentado o recorte de cor, a situação é ainda mais alarmante: nenhum dos filmes brasileiros de maior bilheteria entre 2002 e 2014 foi dirigido por uma mulher negra.
No elenco dessas obras, o espaço das mulheres negras também é muito reduzido: 5%, contra 45% de homens brancos, 35% de mulheres brancas e 15% de homens negros, de acordo com dados do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).
Essas e outras pesquisas aqueceram o ciclo “Quem tem medo das mulheres no audiovisual?”, que reuniu 27 cineastas, realizadoras, militantes e ativistas em 7 mesas de debate, de 17 a 20 de março, no MIS São Paulo, MIS Campinas e centro cultural Tapera Taperá (SP).
O evento, aberto e gratuito, idealizado e organizado pelo Coletivo Vermelha — formado por diretoras e roteiristas que se propõem a pensar criticamente a condição feminina e as relações de gênero no meio audiovisual –, mobilizou mais de 300 pessoas durante os 4 dias de discussão.
No site do Coletivo, é possível consultar a programação completa , os temas das mesas, as minibiografias de todas as convidadas e, em breve, os debates na íntegra: http://coletivovermelha.com.br/.
Paridade de gênero não basta
As mesas abordaram desde a manutenção e transformação dos estereótipos de gênero em filmes e na TV e o impacto disso nas crianças; a existência e a desconstrução da ideia de “olhar feminino”; políticas públicas afirmativas para o setor; até a mulher negra no audiovisual e as relações de produção no set de filmagem.
O balanço das reflexões em todas elas apontaram, entretanto, para uma premissa transversal: a de que falar em paridade de gênero no audiovisual não basta.
Sem levar em conta outros recortes, como classe e cor, o setor audiovisual continuará reproduzindo os privilégios e preconceitos arraigados na sociedade brasileira — desigualdade de oportunidades, renda e gênero, além de homofobia, transfobia, exclusão de grupos como os indígenas etc.
“Falar das estatísticas sobre a mulher negra no audiovisual não vai dar resultado se não colocarmos no debate a palavra discriminação. E falar em discriminação significa que vamos precisar deslocar da fila os companheiros homens, eles precisam sair da frente. E isso é profundamente desagradável. Veja o que está acontecendo em Brasília. É desagradável dizer a quem sempre teve tudo que não vai mais ter tudo”, provocou Wania Sant’Anna, ativista feminista e antirracista, na abertura da mesa “A Mulher Negra no Audiovisual”.
Nilcéa freire, representante da Fundação Ford no Brasil com foco em minorias étnicas e ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2004 e 2011, frisou a importância das ações afirmativas no Brasil durante a mesa “Perspectivas de Transformação: políticas públicas, mídia e sociedade civil”.
“Era impossível para alguém que não era exatamente igual àqueles mil primeiros candidatos, os mais preparados — porque tinham mais oportunidades, mais educação –, furar a fila e entrar na universidade”, argumentou ela, em relação ao surgimento da política de cotas nas universidades públicas. “A lógica das cotas foi se espalhando por outros setores, como o das mulheres, e ajudou a introduzir a perspectiva de gênero nas políticas públicas”, completou.
O cinema como ferramenta política e de construção de discurso
O poder da imagem e da linguagem audiovisual também foi um tema recorrente em diversas mesas.
“Para a descolonização política e cultural, não adianta ser mulher, e negra, é preciso consciência do lugar de ser mulher negra, e que isso se reflita no que a gente quer mostrar. É preciso dominar a linguagem para romper as narrativas estereotipadas e preconceituosas”, afirmou Larissa Fulana de Tal, realizadora no coletivo de cinema negro TELA PRETA, durante a mesa “Perspectivas de Transformação: políticas públicas, mídia e sociedade civil”. Larissa Dirigiu os filmes “Lápis de Cor” (2014) e “Cinzas (2015)”, este último exibido no centro cultural Tapera Taperá, dentro da programação do ciclo.
Viviane Ferreira, cineasta, advogada e sócia da Odun Formação e Produção de Bens Culturais, falou sobre o cinema negro como ferramenta política na mesa “A mulher negra no audiovisual brasileiro”.
“Eu sou resultado de um projeto político idealizado por mulheres negras. Entre o feminismo branco e o feminismo negro, decidimos montar nosso exército. Fui estudar cinema. E assim conheci o trabalho de Zózimo Bulbul, o pai do cinema negro no Brasil, que mostrou pela primeira vez conteúdos negros do país pra uma audiência . E chocou. A linguagem audiovisual é uma forma de construir poder, discurso político. O audiovisual constrói personagens com quem as pessoas vão se identificar, se projetar”, analisa ela.
Livia Almendary
Acesse no site de origem: Evento debate representação e espaço da mulher no audiovisual (Jornalistas Livres, 28/03/2016)