(Clam, 15/05/2014) A mídia, grande reprodutora da ideologia dominante, contribui fortemente para a formação de nossa subjetividade.
E, em função da importância das mulheres na sociedade contemporânea (somos 52% da população, cuidando dos 48% restantes, de quem somos mães e/ou cuidadoras e eventualmente objeto do desejo; e somos responsáveis por 80% das decisões de consumo), ela tem nos focado com os cuidados que lhe convêm.
NÓS, NA MÍDIA
mA linguagem – emotiva, incluindo cenas do cotidiano na programação, com uma narrativa cheia de emoção e suspense – parece especialmente construída para nos envolver e para levar o nosso cotidiano à percepção universal. Mas…
– Estamos ausentes nos espaços “sérios” (aparecemos só em 18% dos telejornais).
– Somos vítimas de uma invisibilidade seletiva – abusam do uso de nosso corpo para vender produtos, nos prometendo implicitamente como brinde, e aparecemos enquanto musas, enquanto vítimas, testemunhas, mas nunca como especialistas (afinal, estamos em todas as profissões e acumulamos 4 anos a mais de estudo que os homens em qualquer nível que se considere); nossas questões, problemas e demandas contemporâneas não são discutidos.
– Enquanto movimento social, somos ignoradas enquanto isso for possível, e criminalizadas ou ridicularizadas quando já não for possível nos ignorar.
– Assim como na mídia em geral, falta pluralidade nas opiniões apresentadas das e pelas mulheres, afinal não pensamos todas da mesma forma.
– Somos bombardeadas com uma imagem de beleza, sempre associada à felicidade e ao sucesso, autoritária porque única além de pouco representativa da diversidade da mulher brasileira – em que somos sempre jovens, magras, brancas, de cabelos lisos e esvoaçantes, preferencialmente loiros.
– A violência é banalizada – ou espetacularizada quando convém – na mídia, que contribui assim para a sua naturalização e reprodução na cultura.
POLÍTICAS PÚBLICAS VERSUS A CULTURA
Como poderosa educadora informal que é, a mídia assim contribui para a reprodução e perpetuação dos estereótipos e preconceitos, naturalizando-os e impregnando-os na cultura.
Com isso, enquanto não mudarmos a cultura que retroalimenta a violência, a discriminação e a exclusão social seletivas, até mesmo as políticas públicas conquistadas terão um alcance limitado no suporte à mudança ou ao apoio que pretendiam dar.
Por exemplo, as creches conquistadas como direito das mulheres trabalhadoras tiveram o seu alcance e eficácia aumentadas quando passaram a ser vistas de depósito de crianças de mães pobres que precisavam trabalhar, em direito da criança à educação e socialização, graças à sua incorporação no âmbito da educação.
As políticas relacionadas às medidas protetivas e rede de apoio e à proteção à mulher vítima de violência jamais serão suficientes se não se mudar a cultura que estranha e reage aos avanços e conquistas das mulheres, com um misto de temor de perda dos “privilégios”, com uma reação de extremo conservadorismo que pretende “mostrar à mulher o seu devido lugar” e a ele devolvê-la, com o aumento da frequência de incidência da violência – doméstica ou mais generalizada.
Não poderemos assim explicar a reação machista às manifestações de contestação e repúdio da divulgação dos resultados – equivocados e mesmo posteriormente corrigidos – da pesquisa IPEA, atribuindo os estupros à vestimenta inadequada das próprias vítimas que, assim, estariam provocando-os e merecendo-os?
Se não assim, como entender a multiplicação das ameaças e sites prometendo estupro às participantes da campanha “Eu não mereço ser estuprada – ninguém merece!”, que chegaram a fazer uma campanha… pela legalização do estupro?
Não será pouco justificar a nossa posição de vanguarda do atraso nos nossos índices imbatíveis de violência e de femicídio?
O que explica a manutenção deste grau de violência machista e conservadorismo?
Denunciamos a violência de gênero desde 1979, com o lançamento do primeiro SOS Mulher, com sua primeira manifestação de rua quando do assassinato da Eliane de Grammont, pelo seu ex-marido, Lindomar Castilho.
De lá, para cá, surgiram as Delegacias da Mulher, os Centros de Referência, a Lei Maria da Penha, as Casas-Abrigo, as Delegacias da Mulher, as Casas de Passagem e Casas da Mulher Brasileira, o 180 orientando as vítimas de violência a denunciar e conhecer os seus direitos. As denúncias e políticas públicas de acolhimento e apoio às mulheres vítimas de violência se multiplicaram, ao mesmo tempo em que se reafirmou a prioridade da lei – independentemente da avaliação dos juízes – e se aumentou as penas dos agressores.
Mas, mudamos a cultura? Ao que tudo indica, não, ou não o suficiente.
HORA DE MUDAR A CULTURA
Os aparelhos ideológicos do Estado são dominados por uma visão conservadora, classista e machista. E esta visão se reproduz tanto na mídia quanto na publicidade (que também contribui para a formação da cultura), tanto nos meios de comunicação privado (jornais, revistas), quanto nas concessões públicas. E começa a estender os seus tentáculos nas mídias sociais.
Qualquer tentativa de adequação de seu foco, de democratização de seu conteúdo, termina esbarrando em sua caracterização, por “eles”, de censura ou de cerceamento à liberdade de comunicação… comercial.
Qualquer proposta de regulamentação, controle, classificação indicativa é rapidamente taxada de censura.
E foi exatamente o que aconteceu ante as demandas expressas na 1ª Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), convocada pela primeira e última vez em 2009, sem que nenhuma de suas demandas tenha sido encaminhada para discussão e transformação em política pública, como sóe acontecer com as demais Conferências.
É também o que parece querer acontecer ante a reação organizada dos setores evangélicos, tentando mobilizar a reação social contra a aprovação do Projeto de Lei 6010/13, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei 9.394/96) para determinar que, entre as diretrizes que os currículos da educação básica terão que observar, constem a divulgação e a ênfase no respeito à igualdade de gênero e às minorias e na prevenção da violência doméstica.
A proposta é de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher no Brasil. Este projeto de lei é por eles classificado como ameaça comunista e desestruturadora da família constituída e da “normalidade”dos papéis e orientações sexuais instituídas.
Urge, portanto, deter o “avanço do retrocesso” e recriarmos valores e uma cultura libertários, igualitários, laicos, diversos, plurais, democráticos e inclusivos, que se contraponham a esta visão que avança sorrateiramente.
Dois instrumentos foram criados neste sentido, pela sociedade civil organizada. O Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica (PLIP) proposto pelo Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), agrupamento no qual participam também as feministas, embora descontentes com alguns aspectos mais conservadores, e o PL 7378 de 2014, apresentado a nosso pedido pelos deputados Paulo Teixeira (PT-SP), Luiza Erundina (PSB-SP) e Janete Pietá (PT-SP), que propõe a discussão e regulamentação das diversas formas de violência de gênero nas escolas, e na mídia, e entre as quais inclui a violência simbólica (de reprodução de estereótipos e preconceitos).
São medidas a serem encampadas, apoiadas e acompanhadas por nós, à qual deverão oportunamente se somar outras, que complementem e reforcem o quadro.
Isso porque ouço que lentamente avançaremos enquanto nossa voz só se fizer ouvida em círculos limitados, enquanto a visão dominante se espalha pela grande mídia, e não encontra espaço de reflexão crítica na escola.
Se a comunicação é efetivamente um direito humano, e se temos todos constitucionalmente direito a ela, é hora de darmos um salto e incluí-la enquanto demanda em nosso cardápio de lutas.
Rachel Moreno é psicológa, especialista em pequisas de opinião, autora dos livros A Beleza Impossível – Mídia, Mulher e Consumo (Editora Ágora) e A imagem da mulher na mídia (Publisher Brasil) e representante da Rede Mulher e Mídia no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Acesse o PDF: As Lutas Feministas e a Mídia, por Rachel Moreno