(Cadernos do Mundial 2014 Clacso, Junho/2014) Há alguma novidade na cobertura da mídia brasileira nesta Copa? Sim, e a mais importante é a presença das mulheres. Elas não estão lá apenas como apresentadoras que “enfeitam” o cenário com minissaias e decotes – e garantem assim a heteronormatividade num espaço povoado por homens. Elas estão como setoristas em grande número, fazendo reportagens com os jogadores, entrevistando (já estavam na Copa de 2010, mas eram poucas), e, importante de sublinhar, também como especialistas, opinando, analisando, falando de táticas, discutindo estratégias.
Pode-se argumentar que a presença das mulheres na mídia futebolista tem a mesma função que teria a dos jogadores estrangeiros nos clubes europeus, correspondendo aos que os espanhóis definiram com o “ponga un exótico en su club”. Elas estariam ali como algo de diferente. E, efetivamente, em muitos programas, elas ainda não são reconhecidas como vozes autorizadas, ainda tem que lutar pelo espaço, já que não encontram eco no que dizem, como se dialogar ou, mais ainda, polemizar com uma mulher fosse indigno para um homem. Elas falam mas não conseguem ter respostas. Parece estarmos diante de situações como as descritas Pitt-Rivers(1) que estudou os códigos de honra masculinos, mostrando que para se manter a honra não se pode aceitar o desafio de um inferior. Ou seja, mesmo sendo vistas como vozes inferiores, que não merecem ainda serem contestadas, elas já estão lá.
De fato, as Copas do Mundo (e as Olimpíadas) eram os únicos torneios de futebol em que a presença das mulheres tinha legitimidade. Durante estes torneios, tudo se passava como se o tabu fosse levantado e elas ganhassem uma temporária permissão social de se envolverem apaixonadamente, como torcedoras, e até, nas Olimpíadas, também como jogadoras. Nos outros torneios, seriam intrusas, vistas como ingressando em um mundo que, por princípio, seria masculino e portanto, necessariamente estrangeiro a elas.
Os lugares-comuns para explicar esta permissão social as mulheres sobram: elas não teriam “paciência” (uma palavra amena para se dizer “capacidade cognitiva”, “inteligência”) para acompanhar um longo campeonato. Não teriam conhecimentos para entenderem as diversas dimensões envolvidas em um campeonato duradouro. Na Copa seria mais fácil, pois seria um torneio rápido, apenas sete jogos para o vencedor, e cada equipe é um país, basta torcer para o seu.
Como torcedoras (desde sempre) mas agora também como especialistas, as mulheres começam a ter voz na Copa, o que não é sem importância, dado o silencio histórico em que foram colocadas durante mais de 30 anos no Brasil, entre 1945 e 1979, período em que jogar futebol era infringir a lei.
Lembrando: como em muitos países, o futebol praticado por mulheres é contemporâneo ao praticado por homens, surge no final do século XIX, na Inglaterra, e teve um ponto de virada durante a Primeira Guerra Mundial (Giulianotti 2002), com um aumento significativo de equipes formadas por mulheres. A igualdade de gênero obtida com a ausência dos homens (convocados a lutar nos exércitos) foi revertida – e o esporte seguiu esse movimento social geral, com características específicas em cada país.
No Brasil, durante os anos 1940, quando o país esteve sob uma ditadura, o futebol “feminino” sofreu um enorme baque com uma proibição que durou quase quatro décadas. Por que o futebol “feminino” foi banido no Brasil até 1979? A razão oficial não foi diferente das alegações levantadas no outro lado do Atlântico no mesmo momento: saúde reprodutiva.
Essa coincidência não surpreende e talvez possamos ver nisso sinais da globalização no esporte, e de uma expressão de um movimento geral nas sociedades ocidentais, cuja sentido levou a restrições da presença de mulheres em muitas esferas sociais que elas tinham conquistado durante e depois da Primeira Guerra Mundial.
No Brasil, a proibição da prática do futebol as mulheres foi um corolário das ideologias eugenistas que pregavam a importância da proteção do corpo da mulher, visto como frágil, para que pudesse continuar cumprindo sua função de procriadora, gerando crianças saudáveis e, por conseguinte, melhorando a raça branca no Brasil.
Por trás dessa suposta proteção podemos identificar o mise-en-jeux das fronteiras de um lugar social para mulher, aquele da mãe, que conforma um tipo particular de corpo: roliço, sem músculos, com formas arredondadas e mobilidade limitada. Um modelo ideal que corresponderia aos papéis femininos socialmente prescritos: passivo e submisso.
Esta exclusão do futebol, inicialmente imposta, foi logo internalizada por muitas mulheres. Quando a antropóloga norte-americana Janet Lever esteve no Brasil nos anos 1980 pesquisando futebol estranhou a ausência das mulheres neste esporte e sua total falta de interesse. Tendo ouvido falar de uma legislação que proibia um esporte que no seu país era praticado predominantemente por mulheres, indagou a um funcionário da Confederação Brasileira de Futebol se era verdade que existia tal lei. Sua resposta foi de que não era preciso lei, as mulheres nunca iriam se interessar por futebol, elas conheciam o seu lugar (Lever 1985)(2).
Pois parece que este lugar está se alterando. Lentamente, é verdade. Martha, única jogador(a) a ter conquista seis vezes a “Bola de Ouro”, o premio FIFA de melhor do mundo, continua não sendo entrevistada para opinar sobre a seleção brasileira ou sobre a Copa em geral. Seu reconhecimento no Brasil é incomparavelmente menor do que o de Neymar, por exemplo, que nunca ficou sequer entre os três jogadores indicados para o prêmio.
Resquícios desta lei que alijou as mulheres por tantos anos do mundo do futebol. Mas que agora, como mostra a presença de mulheres jornalistas cobrindo a Copa do Mundo, parece lentamente tomar outro rumo, embora as etnografias sobre equipes de futebol com mulheres mostrem a enorme distancia (econômica, de popularidade, etc) que ainda tem no Brasil em comparação com as equipes formadas por homens(3) (Pisani 2012; Almeida 2013).
E o que podemos ler também na publicidade, ela que expressa tão bem imaginários sociais?(4) Vejamos alguns spots publicitários de cerveja – que por alguma razão (por ser a bebida preferida
dos inglês, os fundadores do futebol moderno?) – tem sido associada ao futebol desde há muitas décadas, pelo menos desde a Copa da Suécia, como se pode ouvir dos radialistas que narraram a final(5). No primeiro spot televisivo, que foi ao ar durante os anos que antecederam a Copa, um jovem casal mostra a nova casa a amigos. As mulheres em um grupo, os homens em outro. A dona-de-casa abre um grande closet onde se vê dezenas de sapatos de salto alto, e as amigas soltam gritinhos de entusiasmo que são ouvidos no andar de cima, onde estão os homens. Estes, por sua vez, são apresentados pelo dono-da-casa a uma geladeira que, aberta, expõem dezenas de garrafas de cerveja. Os amigos repetem os gritos histéricos de suas mulheres, antecipando o prazer de ver jogos bebendo a cerveja entre os amigos. Ou seja, em poucas imagens, os dois mundos – e seus limites – ficam bem configurados: o dos homens, que remete a cerveja que se bebe assistindo a jogos de futebol; o das mulheres, alheio ao futebol, e a bebida, interessado na aparência e na moda, e em sapatos que estão longe de serem capazes de performances esportivas.
A mesma cerveja será menos excludente das mulheres em outro spot em que um homem recebe um bilhete para um jogo de futebol. Ele está em um país exótico, na América do Sul, e seu retorno à Europa passa por aventuras e riscos, mas ele finalmente chega de helicóptero ao estádio na hora de iniciar a final da Liga dos Campeões, onde lhe espera uma mulher. Ou seja, neste spot, a mulher já participa é ela quem envia lhe envia o ingresso, e – ainda que sem ter precisado sofrer tanto para estar ali – aparece como torcedora; o universo futebolístico aparece como compartilhado por homens e mulheres.
O terceiro spot retoma o tema do primeiro, porém com um final inesperado. Novamente é um grupo de amigos, cervejas, e a espera do futebol pela TV. Só que quando tudo está preparado para assistirem o jogo na sala entre si, a campainha toca, e entram suas mulheres, paramentadas com as cores da seleção brasileira, prontas elas também para verem o jogo. E todos terminam por compartirem o sofá, a cerveja e a torcida no jogo.
As três publicidades são reveladoras de perspectivas diferentes sobre a participação das mulheres no futebol e apontam para uma mudança. Que se verifica também na participação na cobertura da mídia. Não há dúvida de que está participação já não é a mesma na Copa de 2014 em comparação com Copas anteriores. Nunca antes se viu tantas mulheres integrando equipes de jornalistas, como repórteres, participantes em bancadas de especialistas, emitindo opiniões. Quando eram meras apresentadoras que enfeitavam o palco, poderíamos nos perguntar se elas não estariam ali para garantir um toque heterossexual, em um ambiente com tão forte predominância de homens, sua ausência podendo gerar suspeitar quanto a opção sexual dos homens. Mas seu trabalho como repórteres, e cada vez mais externando opiniões, parece indicar uma mudança real. Lenta – ainda não temos nenhuma mulher narradora, nenhuma que comente os jogos durante suas transmissões, e também não temos convite a jogadoras de futebol para participarem dos programas esportivos como temos ex-jogadores e jogadores em atuação – mas uma mudança. E, sabemos, a televisão é hoje o mais importante lócus do futebol(6), servindo para transmitir jogos, mas bem mais do que eles.
Referências:
1. Pitt-Rivers, Julian 1971 [1965] “Honra e Posição Social” em J.G. Peristiany (org.) Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrâneas (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian).
2. “Los brasileños creen que su pasión nacional es un juego de hombres que requiere aguante masculino y violento contacto físico. Las mujeres con quienes hablé consideraban normal su exclusión; mis preguntas acerca de su falta de interés fueron recibidas con expresiones burlonas o con risas. Varias personas me dijeron que iba contra las regulaciones de la CBD – algunos hasta dijeron que contra la ley federal – organizar futbol entre niñas. Cuando pregunté en 1973, un funcionario de la CBD se rió y me dijo que no era necesaria semejante ley, ya que era inimaginable que las niñas jugaran al futbol.” Lever, J. 1985 Soccer Madness: Brazil’s Passion for the World’s Most Popular (Long Grove: Waveland Press).
3. Pisani, M.2012 “Poderosas da Foz: trajetórias, migrações e profissionalização de mulheres que praticam futebol”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina. Almeida, C. 2010 “Boas de bola: Um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980”. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina.
4. Barthes, R. 1964 Rhétorique de l’image in Communications Nº 4; Rial, C. 1995 “Japonês está para TV assim como mulato para cerveja: imagens da publicidade no Brasil” em Antropologia em Primeira Mão Nº8.
5. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=qd4TklxFOm8
6. Alabarces e Duek 2014 “Football for Everyone? Soccer, Television and Politics in Argentina” em Jay Scherer e David Rowe (ed) Sport, Public Boadcasting and Cultural Citizenship: Signal Lost. NY: Taylor & Francis.
* Carmem Rial é antropóloga, docente na Universidade Federal de Santa Catarina e presidenta da Associação Brasileira de Antropologia.
Acesse no site de origem: A participação das mulheres na mídia brasileira na Copa (Cadernos do Mundial 2014 Clacso, Junho/2014)