(O Estado de S.Paulo) A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) considera que o número de brasileiros que passam fome caiu de 22,8 milhões para 13,6 milhões entre 1992 e 2013. A expressiva redução está registrada no último relatório da entidade sobre a fome no mundo, que destaca o Brasil como exemplo positivo. Embora os esforços para combater a miséria sejam dignos de respeito e tragam resultados significativos, é preciso salientar, no entanto, que há dúvidas sobre se tal sucesso tem mesmo a dimensão anunciada e, também, se o fenômeno é sustentável e duradouro.
Os números da FAO a respeito do Brasil são impressionantes. O porcentual de pessoas que passam fome no Brasil passou de 15% para 6,9% da população. Trata-se de uma redução duas vezes mais rápida do que a média mundial, colocando o Brasil entre os 30 países que, na visão da FAO, cumpriram a primeira das Metas do Milênio, isto é, cortar pela metade, entre 1990 e 2015, o número de pessoas que são consideradas miseráveis e que passam fome.
Quando se observa de perto o critério para chegar a tais conclusões, porém, saltam algumas dúvidas importantes. “Fome” é, para a FAO, o estado de quem consome menos de 1.900 quilocalorias por dia. Assim, trata-se de subnutrição, obviamente um problema grave, mas algo distante do estado de fome, que é não ter o que comer. Ademais, embora possa estar baseado em pesquisas científicas respeitáveis, o critério para estabelecer a linha de “fome” é arbitrário – o Banco Mundial, por exemplo, calcula a insegurança alimentar dividindo a renda familiar pelo gasto domiciliar com alimentos.
O fato é que não se pode falar em estado permanente de fome no Brasil, país que produz alimentos em quantidade muito superior à necessária para satisfazer as demandas mínimas de sua população. Não é possível comparar essa situação com o que acontece, por exemplo, em algumas partes da África, assoladas por severas secas e guerras intermináveis. Nesses países, milhares de pessoas morrem de fome, simplesmente porque os alimentos não estão disponíveis.
A medida do sucesso dos programas de erradicação da miséria, portanto, deve levar em conta a imprecisão dos parâmetros. Sem esse cuidado, corre-se o risco de exagerar as conquistas – algo que, além de servir para alimentar a propaganda do governo, impede que se observe a real dimensão do problema e que se tomem as providências mais adequadas para solucioná-lo.
As condições para que a insegurança alimentar seja efetivamente superada vão muito além do acesso a alimentos e a uma renda mínima proporcionada por programas de transferência, como o Bolsa Família. O estado de desnutrição ou subnutrição diz respeito também, por exemplo, à ausência de saneamento básico e de condições minimamente adequadas de moradia, e os últimos levantamentos a esse respeito mostram um atraso considerável no Brasil: apenas 48% das residências no País dispõem de coleta de esgoto.
Além disso, a superação do estado de insegurança alimentar só pode ser considerada completa se a população beneficiada consegue andar com as próprias pernas, isto é, se tem condições de satisfazer suas necessidades básicas sem o auxílio do Estado. Para isso, é necessário que a educação pública seja muito melhor do que é hoje, para que os filhos dessas famílias tenham meios de firmar-se no mercado de trabalho.
Para fins eleitoreiros, no entanto, tais objeções são obviamente inconvenientes. Tanto é assim que, recentemente, a presidente Dilma Rousseff festejou a estatística segundo a qual seu governo, em apenas dois anos, tirou da pobreza extrema nada menos que 22 milhões de brasileiros. Nem se discute como Dilma chegou a esse espantoso número. A questão é saber se, nas atuais circunstâncias, essa gente toda será capaz de se manter acima da linha da miséria sem depender de bolsas estatais, o que só será realmente possível se o País voltar a crescer de maneira consistente – coisa que este governo não consegue fazer.
Acesse o PDF: Combater, de fato, a pobreza (O Estado de S.Paulo, 07/10/2013)