(O Globo) Fóruns recebem em média 200 ações por dia; problema ocorre em vários estados
Diante da falta de vagas em creches públicas, uma avalanche de ações individuais e coletivas está transformando em caso judicial o acesso de crianças à educação infantil: milhares de famílias em todo o país apelam às defensorias públicas para obter matrícula. Segundo a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), cerca de 200 ações dão entrada por dia nos fóruns brasileiros, em busca de acesso à educação infantil (de 0 a 3 anos), num movimento que se intensificou a partir de 2010.
Desde então, diz a Anadep, 300 mil ações já foram movidas contra estados e municípios, numa avalanche de demandas que só agrava a lentidão da Justiça brasileira. Esse volume, entretanto, é pequeno diante da estimativa para o déficit de vagas nas creches do país: 1,8 milhão, segundo relatório do Banco Mundial referente a 2011. Na pré-escola, que abriga crianças de 4 a 5 anos, falta um milhão de vagas, de acordo com o IBGE.
Em todos os estados, a demanda por vagas na educação infantil é maior que a oferta. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) e do Ministério da Educação, em 2012 havia 10,5 milhões de crianças de 0 a 3 anos — dessas, apenas 2,54 milhões, ou 24,2%, estavam matriculadas em creches. E é um problema que atinge sobretudo os mais pobres: o IBGE constatou que, em 2012, entre os 20% mais ricos, 37% das crianças entre 2 e 3 anos estavam fora da creche; entre os 20% mais pobres, o percentual foi de 78,1%. A construção de mais creches é uma das principais promessas da presidente Dilma Rousseff.
Em São Paulo, no Rio, no Rio Grande do Sul e na Bahia, famílias não encontram opção a não ser a Justiça para tentar garantir vagas. Santa Catarina, o melhor estado em termos de acesso a creches, tem dois terços de suas crianças fora da escola. No Amazonas, só sete em cada cem crianças obtêm vagas em creches. Na pré-escola, a situação melhora um pouco, mas, em média, um terço das crianças de 4 a 5 anos não tem acesso à educação.
— É um problema social gravíssimo, que reflete a falta de política pública para educação infantil. A situação não é menos que caótica, com ações pipocando no país inteiro. As vítimas são sempre as mesmas: crianças de baixa renda, filhos de mães solteiras ou divorciadas com o desafio de sustentar suas casas sozinhas — diz o vice-presidente da Anadep, Stéfano Pedroso.
É o caso da funcionária pública Luciane de Vargas Pellenz, de 38 anos. No último dia 17, ela ingressou com uma ação na Defensoria Pública de Caxias do Sul, a 120 quilômetros de Porto Alegre, para matricular a filha Larissa, de 2 anos, em uma escolinha do bairro onde mora. A menina era cuidada pelo pai, mas o divórcio acabou com a tranquilidade da família. Angustiada, Luciane conta que tem até 13 de janeiro, quando volta de férias, para obter vaga:
— Não sei o que fazer. Gasto metade do salário com aluguel e não posso pagar uma pessoa para cuidar dela durante o dia. Minha responsabilidade, que era grande, ficou insuportável — diz a mãe.
Auxílio-creche não cobre os custos
O auxílio-creche de R$ 248, pago pela prefeitura de Caxias do Sul, é insuficiente para bancar a babá e não cobre sequer um terço da mensalidade cobrada por uma creche. A renda bruta da servidora não chega a dois salários mínimos, dos quais R$ 560 vão para o aluguel. Segundo ela, é muito difícil obter vaga em creche sem uma decisão legal.
— Há um abismo social em Caxias. As mães que vêm aqui estão literalmente passando fome porque, sem ter onde deixar os filhos, não podem trabalhar. Em compensação, a situação tem gerado uma rede de solidariedade entre elas que, se não resolve o problema, ameniza o drama — afirma o defensor Sílvio Nodari.
A situação de Caxias é a pior do Rio Grande do Sul. Segundo o subdefensor público-geral jurídico do estado, Felipe Kirchner, mais de 800 ações foram movidas pelo órgão contra a prefeitura este ano e conseguiram bloquear judicialmente R$ 2 milhões em recursos do orçamento para destiná-los à compra de vagas em escolas particulares.
No entanto, o juiz autor da sentença suspendeu a decisão por seis meses como forma de dar tempo à prefeitura para criar as vagas necessárias. O procurador-geral do município, Victório Giordano da Costa, lamenta as decisões judiciais contra a prefeitura. Alega que as decisões são generalistas e beneficiam até famílias com renda alta, que podem pagar por uma escola particular:
— Em Caxias, é comum os pais pegarem os filhos nas escolas municipais, que deveriam ser para baixa renda, com um carrão. Isso a Justiça não vê — reclama o procurador, frisando que o Plano Nacional de Educação (PNE) estipulou prazo ao poder público, prevendo a garantia de 100% de acesso à escola para crianças de 4 e 5 anos até 2016, e pelo menos 50% da faixa entre 0 e 3 anos até 2017.
(Colaboraram Luan Santos e Anderson Sotero (Agência A Tarde), Juliana Castro e Thiago Herdy)
Acesse em pdf: Famílias vão à Justiça por vaga em creches públicas (O Globo – 25/12/2013)