Sem o corpo feminino, a restauração conservadora não se realiza
(Folha de S.Paulo, 29/04/2019 – acesse no site de origem)
Imelda Cortez é uma jovem mulher de 21 anos que cresceu na zona rural de El Salvador, estuprada desde os 12 pelo padrasto 50 anos mais velho. Como consequência da rotina de abusos dentro de casa, a jovem engravidou aos 19.
Depois de ter sido encontrada pela mãe com dores fortes e sangramento intenso, Cortez foi imediatamente encaminhada para a emergência de um hospital, onde o médico suspeitou de uma tentativa de aborto e chamou a polícia.
O bebê foi encontrado com vida e em bom estado de saúde e, após uma semana no hospital, a salvadorenha foi enviada para a prisão, sem possibilidade de fiança. Imelda Cortez foi julgada e condenada a 20 anos de prisão por tentativa de homicídio em 2018.
Nove anos antes, em 2007, Teodora Vasquez estava no trabalho quando sentiu fortes dores na barriga e acabou tendo um parto prematuro, no qual a criança nasceu morta.
Embora não houvesse indícios da prática de um aborto, Vasquez foi presa imediatamente após o parto e sentenciada a 30 anos de prisão por homicídio qualificado.
Imelda e Teodora vivem em El Salvador, onde há 21 anos o aborto foi criminalizado em todas as circunstâncias. Desde então, as mulheres passaram a viver a gravidez como perigo, e não como experiência de afeto e fonte de felicidade. Esse é o projeto de sociedade que a PEC 29 pretende pavimentar no Brasil.
A PEC foi originalmente apresentada pelo senador Magno Malta, em 2015. Seu objetivo era incluir no art. 5º da Constituição Federal —aquele que
diz que todos são iguais perante a lei— o termo “desde a concepção” e fazer retroagir os direitos reprodutivos que as mulheres brasileiras possuem. O projeto acabou arquivado.
Em 6 de fevereiro de 2019, a PEC foi desarquivada por uma representante da “nova política”, a juíza Selma Arruda. Autoproclamada “Moro de Saias”,
Arruda foi eleita pelo PSL do Mato Grosso.
Foi cassada, por unanimidade, quase dois meses depois de assumir seu primeiro mandato, acusada de abuso de poder econômico e caixa dois. Inelegível por oito anos, ela recorre ao TSE sem deixar o mandato e ainda relata a PEC no Senado.
Apagado neste início de legislatura, o Senado se apresenta como lócus para o retrocesso sobre gênero, sexualidade e reprodução, numa espécie de moralismo compensatório ao encaminhamento da pauta ultraliberal, precarizante e antipopular no Congresso. Afinal, é preciso animar a torcida. No texto “A revolta conservadora”, escrito após a vitória de Bolsonaro, o cientista político Marcos Nobre previu: “não há pretensão de governar para todo mundo. Trata-se agora de governar para base social e eleitoral que não é maioria. Tornar esta base fiel é fundamental para manter o poder”.
E quem é a base fiel? Homens, na maioria brancos, com ensino superior completo, na faixa de renda acima de cinco salários mínimos e com forte presença entre evangélicos.
Neste segmento da sociedade, a popularidade de Bolsonaro caiu apenas 8%, destoando da queda vertiginosa em outros setores, segundo a última pesquisa do Datafolha.
Jogar para esta torcida é necessariamente colocar o corpo das mulheres no olho do furacão antidemocrático.
Disputas sobre direitos reprodutivos estão no coração de embates mais amplos sobre gênero, como lembra a pesquisadora Sonia Corrêa, e são um dos motores da ideologia ultraliberal mundo afora. Sem o controle dos corpos das mulheres, a restauração conservadora não se realiza.
Estejamos preparadas.
Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América
Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.