Se é verdade que, no Brasil, o novo ano só começa depois do Carnaval, ainda é tempo de realizar uma retrospectiva, para divulgar leis que pretendem contribuir para o fim da discriminação de gênero em todo o país. Mas fica a ressalva: a simples aprovação delas, por si só, não significa nada, se elas não forem implementadas. Como dizia Carlos Drummond de Andrade, “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”.
Com efeito, a violência contra mulheres é um problema global, que perdura no tempo, apesar de louváveis esforços governamentais e institucionais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 35% das mulheres no mundo são vítimas de violência, seja ela física, sexual, moral, patrimonial ou psicológica [1].
A América Latina e o Caribe são considerados os locais mais violentos do mundo para as mulheres, segundo o estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) com a ONU Mulheres [2]. E um dado que não nos orgulha é saber que as brasileiras sofrem mais violência física e sexual ao longo da vida do que a média mundial, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2023 [3].
Mas não se trata, certamente, de um problema legislativo. O crime de estupro é considerado hediondo e a pena é uma das maiores do Código Penal. Ainda assim, uma mulher é violentada sexualmente a cada oito minutos no país. Somente no primeiro semestre de 2023, foram apurados 34 mil casos. No mesmo período, 2.624 mulheres foram assassinadas, tudo conforme dados do Fórum acima mencionado.
A Lei Maria da Penha, por sua vez, prestes a comemorar 18 anos e fruto de uma condenação do Brasil na Organização dos Estados Americanos, é considerada uma das melhores do mundo no combate à violência contra a mulher. Apesar dos avanços, ainda é preciso fortalecer sua implementação não só no que tange à repressão mas, sobretudo, quanto às medidas preventivas de crimes.
Fato é que apesar de, volta e meia, retornarem à pauta legislativa propostas conservadoras, notadamente em torno de Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres – como o PL do Estatuto do Nascituro e diversos projetos que buscam criminalizar até mesmo as hipóteses de aborto legal – ao menos no ano passado foram sancionadas leis que contribuem para as pautas de gênero [4]. Assim, antes de nos debruçarmos sobre as novas previsões legais para o ano legislativo que se inicia, vale a pena divulgar e fiscalizar a implementação das que já estão em vigor.
1) Lei 14.540 – Instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual
Trata-se de Programa que objetiva prevenir e enfrentar a prática do assédio sexual, violência sexual e demais crimes contra a dignidade sexual. Para tanto, prevê a capacitação de agentes públicos e implementação de campanhas educativas.
2) Lei 14.541- Garante o funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams)
A Lei 14.541 dispõe sobre a criação e o funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher durante toda a semana, inclusive em fins de semana e feriados. Nos municípios em que não há delegacia especializada, caberá à unidade policial existente o atendimento à mulher vítima de violência, o que deverá ser feito por uma agente feminina especializada para tanto.
3) Lei 14.542 – Garante prioridade para mulheres em situação de violência doméstica no Sistema Nacional de Emprego (Sine)
A nova previsão legal estabelece que mulheres em situação de violência doméstica ou familiar terão prioridade no Sine, com vistas a facilitar sua inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, impulsionar sua autonomia financeira. Trata-se de medida importante, pois muitas vítimas não denunciam os agressores, em razão da dependência econômica.
4) Lei 14.550 – Proteção imediata para mulheres que denunciam violência doméstica
A nova previsão acrescenta parágrafos ao artigo 19 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), com o objetivo de dar maior efetividade à aplicação das medidas protetivas de urgência. Ainda, i) determina a concessão da medida protetiva de urgência independentemente de registro de boletim de ocorrência; ii) concede o devido valor à palavra da vítima; iii) determina que as medidas protetivas não têm prazo (embora o juiz possa, naturalmente, fixá-lo); iv) configura toda situação de violência doméstica e familiar contra a mulher como violência baseada no gênero.
5) Lei 14.674 – Prevê o direito de auxílio-aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica
Tal benefício pode ser concedido para mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica por um período de até seis meses. Trata-se de lei de grande alcance, mas é preciso verificar como se dará sua efetivação, tendo em vista que uma a cada 10 brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, de acordo dados da 10ª Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher [5].