Organizadora do livro “50 anos de feminismo” fala sobre os percursos da luta das mulheres no continente
Em meados da década de 2000, a América do Sul observou um fenômeno interessante e inédito. Em um continente marcado pela desigualdade de gênero e pela sub-representação das mulheres na política, pela primeira vez, três mulheres foram alçadas à presidência em seus países. A Argentina elegeu Cristina Kirchiner, o Chile, Michelle Bachelet e, o Brasil, Dilma Rousseff.
Para Lucia Avelar, pós-doutora em Ciência Política pela universidade de Yale, não se tratou de uma coincidência, mas de um percurso histórico trilhado pelas mulheres e pelo movimento feminista nesses países. Do insight, nasceu o livro 50 anos de feminismo – Argentina, Brasil e Chile (Edusp), que se debruça sobre a comparação das transformações de gênero nos países que atravessaram períodos autoritários e elegeram mulheres para a presidência.
Em entrevista a CartaCapital, Avelar fala sobre as semelhanças e diferenças entre as feministas argentinas, brasileiras e chilenas e sobre as novas gerações de representantes da luta pelo direito das mulheres.
CartaCapital:Como surgiu o interesse de debruçar-se sobre a história do movimento feminista na Argentina, no Brasil e no Chile?
Lucia Avelar: Em um certo momento, mais ou menos entre 2012 e 2014, havia na América do Sul nesses países três mulheres presidentes, a Cristina Kirchner na Argentina, a Dilma no Brasil e a Michelle Bachelet no Chile. Não nos parecia uma coincidência, havia fatores históricos que levaram a esse fato que era a Cristina, a Dilma e a Bachelet governarem concomitantemente.
Escolhemos o marco de 50 anos porque, na verdade, houve um movimento da juventude urbana, não só no Brasil, que antecederam, de algum modo, as ditaduras latino-americanas. Quando elas se instalaram, essa juventude aderiu aos movimentos contra o regime e, as mulheres, aderiram primeiro como pessoas que encontraram movimentos políticos, especialmente os de esquerda. Nessa experiência, depois, com golpe, elas foram para a clandestinidade, tiveram experiência com os colegas homens nesses movimentos. O que elas concluíram, depois de serem presas, exiladas e torturadas, é a existência, sim, de uma hierarquia de gênero mesmo nesses espaços de esquerda.
(Carta Capital, 31/05/2017 – Acesse no site de origem)
CC: Quais foram as consequências dessa conclusão?
LA: Elas tomaram a consciência de que alguma coisa precisaria ser mudada na relação homem-mulher. Algumas delas foram para o exterior, principalmente para a Europa, onde estudaram. A Europa foi decisiva para criar um conhecimento sobre as relações de gênero. Quando elas voltaram, viram que os nossos movimentos de mulheres e feministas ainda tinham muito o que fazer.
Quando elas voltaram ao Brasil, deram o passo, importantíssimo, da transição entre uma militância política e feminista. Aí vem toda a história. Foi um momento de ebulição enorme, entre o final dos anos 70 e os 80, de uma transformação cultural, de uma visão de mundo mesmo, das mulheres e de seu papel na sociedade, na política, na família e nas mídias. Porque em tudo havia uma hierarquia: os homens nos cargos de poder e as mulheres no operacional. Assim era no Judiciário, nos sindicatos e até em áreas mais abertas, como a universidade, não havia mulheres reitoras.
Acho que esse livro mostra uma história de conquistas e do quanto nós conseguimos caminhar e ainda que há muito por fazer. Por exemplo, no dia do lançamento do livro, uma alegria enorme que tivemos foi ver muitos jovens, muitos. Muitas mulheres jovens, mas também homens que hoje já têm uma visão das relações de gênero muito diferente e que estão mais incorporados culturalmente nessa mudança que é estrutural.
CC: Nas novas gerações, o acesso ao feminismo vem por meio da Internet e do Facebook, e se tem a impressão de que são coisas novas, mas muitas discussões datam de anos atrás.
LA: A Internet é poderosa a curto prazo, mas são os livros que trazem toda a história, que a contextualizam. Acho que uma coisa não substitui a outra. Quem só lê pela Internet fica muito no aqui e agora.
CC: Quais são as principais semelhanças que podemos apontar entre os movimentos feministas dos três países? Quais as particularidades de cada país?
LA: Em primeiro lugar, é surpreendente, mas os movimentos feministas no Brasil conseguiram se estruturar e se organizar de um modo muito mais completo do que na Argentina e no Chile.
As mulheres que começaram lá atrás, na década de 1960 e 1970, via partidos políticos e que depois foram para o feminismo, já tinham uma experiência de organização política.
Quando se completou a transição democrática, e aí há uma particularidade importantíssima, que só o Brasil, dos três países, teve uma nova Constituição. Nela, muitas conquistas foram escritas. Por exemplo, o Brasil organizado em movimentos de direitos humanos teve uma presença muito grande na Assembleia Constituinte, com lobbies fortíssimos junto aos deputados e senadores e, com isso, houve uma inovação muito grande nos capítulos da Constituição de 1988.
Pessoalmente, eu me lembro de muitos deputados conservadores revoltadíssimos, dizendo que aquilo era absurdo, que a Constituição era absurda, que não fazia jus ao Brasil. A verdade é que os grupos organizados tiveram uma vitória muito grande em 1988.
CC: Como o movimento se formou na Argentina?
LA: Essa é uma diferença super importante. A Argentina já havia feito, no início dos anos 90, em um momento muito especial, conseguiram passar do voto proporcional de lista aberta para a fechada e os movimentos de mulheres conseguiram introduzir aquela cota de gênero real, em que nas listas de candidatos que vão concorrer, a cada três nomes, aparecesse um nome de mulher.
Essa é a diferença na Argentina. Mas, segundo depoimentos de lideranças de mulheres argentinas, elas ficam muito atrás na institucionalização de movimentos, nos diálogos dos movimentos de mulheres com o estado, com a entrada desses movimentos nos ministérios ou nas prefeituras.
Lá não se consegue ir do regional para o local, como acontece, por exemplo, na Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. As brasileiras tem um contato direto com os movimentos e levam os movimentos organizados para o plano nacional. Uma coisa, como tivemos no passado, conferências nacionais de mulheres, o Chile e a Argentina nunca tiveram.
Aquilo era para fazer uma agenda da prioridade de atendimento que o estado deveria dar nas políticas públicas para as mulheres. Isso foi uma conquista. A implementação dessas políticas públicas é outra história, mas isso ficou. Foi um capítulo que a gente escreveu.
Na Argentina, muito longe disso, elas nunca tiveram redes, mesmo com a Cristina Kirchner. Os movimentos reclamavam muito dela. Diziam que o Néstor parecia mais aberto do que ela [às demandas das mulheres].
CC:Como foi o governo de Bachelet no Chile?
LA: No caso da Bachelet, é preciso fazer uma distinção enorme entre o primeiro e o segundo mandato. No primeiro, ela realmente fez arranjos institucionais, incorporando lideranças feministas e as políticas avançaram muito, por exemplo, creche e a previdência. No Chile a Previdência é um caso seríssimo, onde estão fazendo o movimento contrário ao brasileiro. É uma história linda, na verdade.
Elas caminharam por um lado, nós conseguimos avançar, depois nós retrocedemos e agora elas estão avançando. Tudo isso estamos contando no livro. E o incentivo que a Bachelet deu na representação política das mulheres, é porque o Chile vai tão mal na representação formal quanto o Brasil, enquanto a Argentina está lá na frente, com 40% de representação. Nós e o Chile ficamos nos 10%.
Foram avanços importantes, mas no segundo mandato da Bachelet houve uma série de constrangimentos, da comunidade financeira internacional inclusive, e ela retrocedeu na política pública para mulheres.
É essa a comparação que pensamos. Como os avanços das políticas para as mulheres, por conta desses movimentos de décadas e décadas, tem que ser contextualizados historicamente. Não dá para falar numa chave única. É preciso realmente contextualizar.
CC: Você chegou a citar que é “surpreendente” observar como o movimento de mulheres no Brasil é bem organizado. Por que temos a impressão de que aqui temos menos organização do que na Argentina, por exemplo?
LA: Acho que é a organização do ponto de vista hierárquico. Como é que você transmite os interesses do local ao nacional? Por exemplo, na Argentina, existe uma questão que eu discuti muito com as colegas e pedi para me explicarem: por que vocês estão sempre na rua protestando? Nós, os brasileiros, só protestamos muito recentemente. Eles não, qualquer coisa estavam nas praças. E no Brasil não, nunca houve grandes movimentos de massa, o primeiro foi o pelas Diretas Já, no final da década de 1980. Enquanto isso a Argentina já tinha feito milhares de manifestações.
Então, há uma diferença entre o que se dá no Brasil e os movimentos de massa na Argentina, que acontecem e depois recuam, onde não há uma continuidade de trabalho que levem os interesses às mais diferentes entradas que estado oferece, de acordo com a disponibilidade do governo de plantão, claro.
CC: Onde estavam essas entradas no estado brasileiro nos governos Lula e Dilma?
LA: Era muito interessante, porque havia uma cooperação horizontal da máquina estatal, por exemplo, havia no MDS secretarias que cooperavam com a Secretaria de Políticas para Mulheres. No Ministério do Desenvolvimento Agrário, as trabalhadoras agrícolas também fazia essa rede horizontal para propor uma política favorável a cada tipo de movimento. Isso você não teve na Argentina e teve muito pouco no Chile. Acho que só no México há alguma coisa parecida conosco.
CC:Como você vê essa nova geração de feministas na América do Sul?
LA: Elas estão recebendo um bom caminho, digamos assim. O mundo digital para elas já é fonte de mobilização, de um lado. A questão, por exemplo, do feminismo incorporar também os movimentos LGBT. Essa manifestação pública, que vai e depois se dissolve, e volta para as suas organizações locais ou regionais, isso é uma herança que estamos deixando para as novas gerações de feministas no Brasil.
No caso do Chile, por exemplo, o que está acontecendo é que os mesmos movimentos feministas não incorporaram, por exemplo, as mulheres indígenas. Essa temática da interseccionalidade, os movimentos feministas chilenos agora que estão se abrindo para essa realidade.
A Argentina se gaba de ter representação provincial e, com isso, elas conseguiram algumas coisas importantes. Por exemplo, se a Kirchner não fazia grandes coisas, foi ela que fez a legislação mais avançada para os LGBTs. A juventude está repensando. No nosso livro, há um artigo da Flavia Rios sobre mulher negra no Brasil. Aqui, essa realidade da invisibilidade da mulher negra na história dos movimentos está sendo resgatada.
CC: No Brasil, no Chile e na Argentina há um histórico de marginalização das mulheres na esfera política. No entanto, a Argentina hoje apresenta índices altos de representatividade institucional, em comparação com o Brasil. É possível tirar lições do contexto argentino?
LA: Eu não tenho muitas esperanças. Nós já tivemos algumas oportunidades históricas para mudar a legislação eleitoral e sempre saímos sempre piores do que entramos. Acho que o clube do bolinha partidário oligárquico que rege o Brasil é muito forte. É forte demais. A organização regional da política, no centro, é muito difícil de mudar. Acho que, sem dúvidas se olharmos a representação da Câmara e no Senado, vemos que é o mesmo tipo de representação, que sobreviveu a vários regimes políticos, sobreviveram ao café com leite, à ditadura e continuam firmes e fortes.
Um dado que eu tive outro dia sobre jovens deputados no Brasil é que a maioria é filho de famílias de políticos. Acho que vale a pena aprofundar o estudo dessa continuidade oligárquica no Brasil e, com isso, a gente consegue compreender melhor a dificuldade das mulheres de ter uma representação maior. É um clube fechado.
Raramente há lideranças autênticas, a não ser que ela arraste muitos votos como no passado ocorreu com a Marta Suplicy. Mas isso já acabou, e não vejo hoje boas lideranças que se imponham aos quadros partidários. Há uma renovação muito pequena na Câmara de Vereadores, no âmbito local, em algumas regiões brasileiras, há um aumento na representação de mulheres, mas no plano estadual e nacional a coisa continua bem fechada.
CC: Como você analisa a visibilidade do movimento feminista hoje no Brasil?
LA: A nossa intenção, quando se organizou a pesquisa, era de que o debate feminista, sobre questões de gênero e sobre as políticas públicas para mulheres ganhasse mais visibilidade nas mídias. Porque nunca falam da gente. O percurso histórico que conversamos não existe na grande mídia, é como se não tivesse existido. Quando falamos entre nós, parece que é mentira, mas é falta de pesquisa. A nossa esperança é que ganhemos mais visibilidade, mais legitimidade e que a nova geração de jovens venha junto.