Projeto que prevê a criação de um fundo de enfrentamento à violência não caminha na Câmara porque a bancada religiosa acredita que ele abre brechas para estimular a descriminalização do aborto. Especialistas criticam a interferência da religião no Poder
(Correio Braziliense, 17/03/2017) Ao contrário da forte mobilização nas ruas de todo o país e do mundo, a semana da mulher deixou a desejar no Parlamento. Sem consenso para aprovar projetos significativos, a bancada feminina teve de se contentar em apreciar proposições de valor mais simbólico, como a alteração do nome do livro Heróis da Pátria para Heróis e Heroínas da Pátria. A principal reivindicação das parlamentares, o PL 7371/2014, que cria o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, mais uma vez foi para a gaveta por causa de uma interpretação polêmica da bancada religiosa. Na opinião de especialistas, a mistura do poder público com religião contribui para manter o Brasil na quinta posição do ranking de países em que mais se matam mulheres. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a cada hora do ano de 2016, 503 mulheres foram vítimas de agressão, totalizando 4,4 milhões ao ano.
O PL 7371/14 chegou à Câmara em abril de 2014, saindo do Senado como resultado da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra a Mulher. Durante pouco mais de um ano, deputadas e senadoras se debruçaram sobre o tema para firmar um compromisso e recomendar ações ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, entre elas, a criação do fundo. Ao começar a tramitar na Câmara, parlamentares da chamada bancada da Bíblia travaram a ideia por acreditarem que, ao contemplar o Plano Nacional de Políticas para Mulheres, o projeto cria brechas para o financiamento do aborto no país e, em seguida, estimula a descriminalização da prática. A mobilização se espalhou entre religiosos e, a cada tentativa de discussão do projeto em plenário, os deputados recebem, em média, 200 e-mails por dia pedindo que se posicionem contrariamente ao “PL Cavalo deTroia” ou “PL do abortoduto”.
O deputado católico e membro do grupo PróVida Diego Garcia (PHS-PR) apresentou uma emenda ao PL que garante que os recursos não possam ser aplicados em “equipamentos, serviços ou atividades relacionadas direta ou indiretamente ao aborto provocado, incluindo os casos especificados em lei”. “O aborto é crime e não podemos permitir que esse fundo seja utilizado para tal fim. Não podemos fazer com que uma mulher que tenha sofrido uma violência a torne coautora de outra violência. Isso é muito distante da atenção e do cuidado que essa mulher necessita”, afirma Garcia.
Apesar de não concordar com a emenda, grande parte da bancada feminina está disposta a aceitar a intervenção para, ao menos, garantir a aprovação do fundo. “Essa discussão toda diminui a importância do projeto, que é dar condições financeiras aos estados e municípios para se equiparem e criar em uma rede de enfrentamento à violência”, comenta a deputada Conceição Sampaio (PP-AM).
Aparato caro
Excomungado pela segunda vez, no início de 2016, por representantes da Igreja Católica em Pernambuco, por ter realizado o aborto de uma menina de 9 anos que engravidou de gêmeos ao ser estuprada pelo padrasto, o médico Olímpio Moraes destaca que esse é mais um dos absurdos que se espalham pela internet e contribuem para a morte de mulheres. Gestor executivo do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), da Universidade de Pernambuco (UPE), o ginecologista conta que o trabalho de acolhimento a essas mulheres demanda um aparato social muito caro. “É triste e vergonhosa essa situação. Fundos internacionais não podem investir porque não têm onde colocar o dinheiro. Esse projeto nem fala de aborto. Ele pretende diminuir o aborto. Se a gente impede que a mulher seja estuprada, ela não vai precisar fazer um aborto legal”, comenta.
Em campanhas na internet, a Secretaria Nacional de Política para as Mulheres tenta reverter o movimento contrário ao PL. “A aprovação desse projeto é muito importante para fortalecermos as políticas para as mulheres, trabalhando, principalmente, a prevenção. Precisamos, urgentemente, combater a violência, reduzir os altos índices de feminicidio e crimes diversos que vitimizam milhares de mulheres em todo o país”, afirma a secretária Fátima Pelaes. A promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas Rocha Paes destaca ainda que os empecilhos em torno da criação do fundo faz com o que o Brasil não esteja cumprindo acordos internacionais dos quais é signatário, como a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. “Esse fundo é imprescindível para salvar vidas”, afirma.