As Olimpíadas negras, por Washington Fajardo

19 de março, 2016

(O Globo, 19/03/2016) Há risco de termos só superficiais representações da matriz africana na abertura. Ou oferecermos só festa e alegria quando a cultura negra é multifacetada

Será a primeira vez que as Olimpíadas serão realizadas em um país com maior percentual da população afrodescendente fora da África. Somos o país com a segunda maior população negra do mundo, após a Nigéria.

Como evento mais significativo da humanidade através do esporte, precisamos lembrar o seu valor geopolítico, como clave que impulsiona os direitos humanos e registro das transformações pelas quais passamos.

Não podemos esquecer o impacto mundial da performance dos atletas negros na Olimpíada de Berlim, em 1936. Hitler pretendia mostrar ao mundo a supremacia ariana do nazismo, mas quem foi vitorioso foi o magnífico atleta negro americano Jesse Owens, ganhador de quatro medalhas de ouro, eternizado para o mundo pelas primeiras transmissões de TV.

Não podemos esquecer também o gesto alusivo aos Panteras Negras, feito pelos atletas Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze), na cerimônia de medalha dos 200 metros rasos na Olimpíada no México, em 1968.

A geopolítica dos jogos tem sido negligenciada pelo governo federal, cabendo ao Rio do Janeiro arduamente carregar tal simbolismo. A cidade claramente demonstra capacidade de transformação, de reinvenção urbana, tendo competência em entregar equipamentos esportivos no prazo e respeitando recursos públicos.

Mas a cidade parece não vislumbrar outras dimensões além da gestão profissional, especialmente da apresentação ao mundo da sua diversidade, afirmando claramente que no século XXI serão estes valores locais e urbanos as verdadeiras dimensões de inovação, de geração de riqueza compartilhada e de afirmação política. É resposta à desestruturação da democracia representativa, evidente nos radicalismos Trump x Bernie nos EUA, assim como no coxinhas x petralhas no Brasil.

Corremos o risco de termos apenas superficiais representações da matriz africana na cerimônia de abertura. Ou oferecermos apenas festa e alegria quando a cultura negra é multifacetada, identidade primordial, com impacto profundo em diversos campos, da gastronomia, à economia, à ciência, à engenharia, à literatura. Não foram poucos os trabalhos do povo afro-descendente para construir este país.

Não podemos esquecer da Década Internacional de Afrodescendentes, criada pela ONU e iniciada ano passado.

O Porto do Rio é um lugar único, pois teremos, ao mesmos tempo, cerca de 300 mil metros quadrados de espaço público “pedestrializado”, da Rodrigues Alves, à Praça Mauá, à Praça XV; nova mobilidade com o VLT; arquiteturas avançadíssimas como a do Museu do Amanhã, de arquitetos internacionais, ou MAR, de arquitetos cariocas; temos a extrema inteligência curatorial destes espaços, tão decisivos para o sucesso destes quanto os edifícios. Um espaço público para todos.

E isto lastreia-se na ancestralidade local, única no planeta, onde o Cais do Valongo é o epicentro de uma cosmologia de lugares, memórias e acervos que permitem entendimento mais avançado sobre nós mesmos. Cemitérios dos Pretos Novos, Quilombo da Pedra do Sal, Tia Ciata, Pequena África, Centro Cultural José Bonifácio, galpão da cidadania (Docas Dom Pedro II), Laboratório da Arqueologia Urbana, dentre tantos, fazem deste mesmo sistema de reinvenção urbana o Circuito da Herança Africana.

Entretanto, seus designs enfrentam precariedades. A saída do lixo do Hospital dos Servidores dá-se por lateral junto ao Valongo, candidatíssimo a novo patrimônio da humanidade da cidade, que carece de mobiliário urbano melhor elaborado, coerente com sua relevância. O governo federal não realiza a titulação do Quilombo. O José Bonifácio está restaurado desde 2013 mas ainda sem atividade cultural definitiva. As docas, uma propriedade federal, deveriam ser convertidas em grande memorial territorial negro, podendo abrigar outras funções como um mercado, ou empreendedorismo negro, em seus mais de cinco mil metros quadrados. Iniciar o acesso a um dos mais relevantes acervos de arqueologia que narra a diáspora negra no mundo. Os Pretos Novos, um dos espaços culturais mais pulsantes da região, que necessita de melhor infraestrutura.

Estes lugares, peças da singularidade do Rio, “caquinhos” arqueológicos, são o quebra-cabeça da nossa sociedade. Montá-lo significa apresentar ao mundo, durante os Jogos, uma das nações mais diversas e belas do planeta, que é eficiente em gestão, que cumpre prazos, que respeita recursos públicos, e que reconhece suas imperfeições, o racismo predominante, mas que se impõe, imperfeita, porém magnífica como uma outra utopia americana possível e viável, desejosa de estarmos juntos.

Washington Fajardo é arquiteto e urbanista

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