(Revista Galileu, 26/03/2018 – acesse no site de origem)
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), coletados pelo IBGE ao longo de 2016, no Brasil, nove entre cada dez mulheres gastam ao menos uma hora por semana com tarefas domésticas. Entre os homens, apenas sete em cada dez se dedicam ao lar, investindo metade do tempo que as mulheres.
Esses números são um reflexo do que correntes das ciências humanas chamam de “divisão sexual do trabalho”, configuração que classifica as funções, tarefas e lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade. É ele que define, por exemplo, porque foi definido que as mulheres são consideradas as principais responsáveis pelos afazeres domésticos.
Segundo a cientista política Flávia Biroli, essa divisão também interfere na vida pública. Em seu novo livro, Gênero e Desigualdades – Limites da Democracia no Brasil (Editora Boitempo, R$ 53, 252 páginas), a professora da Universidade de Brasília (Unb) argumenta que a divisão sexual do trabalho é uma interferência para a participação feminina na cidadania e na democracia.
“Entendo que a divisão sexual do trabalho doméstico incide nas possibilidades de participação política das mulheres porque corresponde à alocação desigual de recursos fundamentais para essa participação, em especial o tempo livre e a renda”, escreve ela. Ou seja, uma divisão desigual das tarefas do lar entre homens e mulheres acarreta com que elas tenham menos tempo para se dedicar a carreiras profissionais, e por consequência, obtenham uma renda menor. O mesmo não ocorre com eles. Dispensados nas atribulações da vida privada, o tempo sobra – e uma renda e prestígio maiores são possíveis. Essa diferença de renda pode chegar até 25,6%, de acordo com pesquisa da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL).
Todo esse panorama é tratado em Gêneros e Desigualdades, obra em que Biroli discorre sobre as formas que as estruturas tradicionais da sociedade são empecilhos para atuação política e pública de mulheres em cargos democráticos. Perpassando pelos grandes temas do feminismo pós-1970, mas como foco no contexto brasileiro, a professora tenta compreender os impasses que se apresentam na construção de relações de gênero mais justas.
A pesquisadora esteve em São Paulo em março para divulgar o novo livro e bateu um papo com a GALILEU no escritório da Editora Boitempo. Confira:
O que você se propôs a analisar em seu livro?
Minha entrada para o campo de estudos de gênero vem pela discussão sobre a democracia. Inicialmente, trabalhei com as relações de gênero, mídia e política, abordando a questão da presença das mulheres políticas na mídia e sobre como a baixa presença delas na mídia reforça uma situação de configuração masculina da política institucional.
Desde então, venho trabalhado com debates sobre a participação política e, paralelamente, com a questão do direito ao aborto, fazendo uma conexão entre a configuração do debate público sobre a agenda feminista e de direito das mulheres. Durante esse processo, começou a ficar bem claro para mim que a compreensão que tenho de toda a problemática da participação das mulheres na política é, nesse sentido, muito fiel ao debate feminista. [A ausência de mulheres no espaço público] vem de uma análise do cotidiano das relações sociais, de como as desvantagens para as mulheres se estabelecem e se reproduzem.
Pensei, então, em compor o livro a partir desse esforço de entender as diferentes dimensões da desigualdade de gênero, pensando que o ponto de partida não é a ausência de mulheres na política, mas sim as diferentes dimensões que se articulam com o espaço da política institucional – além das relações de poder no cotidiano, que também vão se constituindo como obstáculos para que as mulheres conquistem maior presença nos espaços de decisão. E isso reverbera, porque a baixa presença nos espaços de decisão significa que questões relevantes, como direitos reprodutivos, por exemplo, são definidas por maiorias masculinas na política.
No livro, você menciona que as experiências humanas estão divididas em “vida pública” e “vida doméstica”, afirmando que as mulheres têm mais responsabilidades nessa segunda categoria do que os homens. Como é criada essa fragmentação e de que forma isso impacta a sociedade?
Essa configuração compartimentada das esferas entre “vida pública” e “vida doméstica” se faz de maneira silenciada. Na história do feminismo, o debate sobre essas conexões é central, porque para se pensar na posição das mulheres na esfera pública, é preciso compreender quais posição elas assumem na vida doméstica e familiar.
O que é interessante é que a atribuição de responsabilidades para mulheres e homens na esfera privada tem uma relação com as expectativas que existem em relação à ocupação de espaços na esfera pública, que são muito diferentes para homens e mulheres.
Acho que existem duas linhas importantes para se pensar sobre a questão da vida pública e vida privada. Uma delas é a ideia de que existe uma conexão natural entre o feminino e o doméstico. Embora ela seja um ideal de referência, uma ideologia de construção de um certo sentido do “feminino”, ela não é a realidade de todas as mulheres, porque, para a maioria delas, nunca foi possível ficar de fato somente atuando na vida doméstica, como as figuras femininas das famílias dos anos 1950.
Mas, apesar disso, essa ideologia funciona como uma referência para se julgar as mulheres. Desde a socialização das meninas, as expectativas em relação a elas são de que elas cumpram esse papel. Há uma certa confusão entre o que é o feminino e o que são responsabilidades que não têm nada de natural e que são atribuídas às mulheres na esfera doméstica. Essas responsabilidades da esfera doméstica se desdobram em uma série de vantagens para se participar da esfera pública, como, por exemplo, o acesso ao tempo e à renda.
Se pegarmos os dados sobre renda no Brasil, temos 25% de diferença na renda média entre mulheres e homens. Isso mostra que existe um limite no ponto de vista da construção das habilidades para se atuar na esfera pública. Ou seja, as mulheres estão sendo habilitadas para atuar na esfera pública, estão adquirindo competências de maneira até mais intensa do ponto de vista da participação delas no ensino formal do que os homens. Mas elas permanecem como as principais responsáveis pela cria doméstica, pelos cuidados dos filhos. Há pesquisas que indicam que elas gastam o dobro do tempo semanalmente com o trabalho doméstico. É nesse eixo de como a vida cotidiana se organiza que se cria um obstáculo para que as mulheres participem da vida pública.
Quem está presente nos espaços institucionais da vida pública é, sobretudo, um conjunto de homens que são patrões. Eles são homens, que, em sua maioria, não lidam com o trabalho doméstico e com o trabalho de cuidados. E, dada à configuração racial de classe deles, as suas esposas também não estão impactadas da maneira mais forte pela divisão sexual do trabalho, porque elas podem contratar alguém para realizar esse trabalho.
Claro, estão impactadas, porque se houvesse uma questão que se esgotasse na raça e na classe, nós teríamos mais mulheres na política. Existe um impacto, mas ele se configura de maneira bem diferente, porque essas mulheres têm recursos para navegar em uma organização social que torna o cuidado um bem de mercado, e não uma responsabilidade coletiva ou pública.
Você diz, então, que, além do espectro de gênero, a divisão sexual do trabalho também impacta as pessoas diferentemente por classe e raça. Na introdução da obra, você escreve “A dualidade entre o público e o privado constitui papéis, produz o gênero. Mas não o faz da mesma forma para todas as mulheres”. Poderia explicar?
Eu vejo a crítica feminista na história como um ativismo com grande potencial de leitura sobre a organização do mundo. Os vários tipos de feminismos colocam as experiências das mulheres no centro e essa perspectiva de gênero traz a possibilidade de se conectar o cotidiano da vida e das relações afetivas com a política, coisa que outras correntes de pensamento não fizeram. Então, entendo que essa é uma corrente crítica muito potente, do ponto de vista da possibilidade de nos ajudar a vislumbrar outros modos de organizar não só das instituições políticas, mas da vida, e exigir que essas instituições públicas correspondam às necessidades concretas das pessoas.
Mas esse horizonte crítico se torna muito limitado quando ele se espelha na posição de uma minoria de mulheres. Até porque os dados que temos sobre participação das mulheres na sociedade e sobre acesso à renda mostram que se não olharmos para o caráter racializado do acesso às ocupações, não entenderemos nada sobre a desigualdade de gênero.
Por exemplo, os lares domésticos chefiados por mulheres no Brasil são lares que têm uma renda média inferior aos lares chefiados pelos homens. Mas quando olhamos em uma perspectiva racial, observamos que os lares chefiados por mulheres negras têm uma renda média inferior aos lares chefiados por mulheres brancas. E que os lares chefiados por mulheres brancas têm uma renda superior aos lares chefiados por homens negros.
Existe uma intersecção entre questões de gênero, raça e classe que posiciona as pessoas. Isso está presente em todas as dimensões da desigualdade de gênero. Sim, são desigualdades de gênero, mas são desigualdades de gênero em que as mulheres estão posicionadas de modo diverso segundo a sua localização do ponto de vista das relações de classe e da racialização na sociedade.
Ao longo da obra, você menciona que o Brasil está vivendo um momento de “reações conservadoras”…
Sim, não estamos passando por uma época de conservadorismo, porque conservadorismo corresponde a esforços para conservar as coisas como elas estavam; não é isso que está acontecendo. O que temos é uma reação às mudanças de diferentes tipos que vêm ocorrendo. Essa reação busca conservar uma ordem moral e social que está transformada.
Isso é reflexo da atuação política muito intensa das mulheres e dos movimentos feministas que surtiu efeito. Até porque a baixa presença das mulheres na política institucional como mulheres eleitas ou para cargos de primeiro escalão não esgota o problema da participação política das mulheres.
Está havendo uma participação muito intensa nessas últimas décadas, em âmbito transnacional, com um ganho de legitimidade para a agenda das mulheres e com transformações também no campo do direito. É uma reconfiguração de vários aspectos da cidadania em uma perspectiva que leva em conta as mulheres e os corpos sexuados. Assim surgem as reações conservadoras, que são contra esses resultados políticos, institucionais e do direito.
Mas me parece que a gente precisa entender essa reação também como uma resposta às mudanças sociais mais cotidianas. Por exemplo, os papéis e as vivências da sexualidade vêm ganhando novos sentidos. Assim, surgem reações conservadores fundamentadas em uma concepção de família, por exemplo, que não correspondem ao modo com as famílias reais funcionam, tentando definir uma causa para a desordem moral.
Eu penso que a causa para tal mudança nas estruturas sociais é o fato de que temos uma organização política e econômica que leva muito pouco em conta as necessidades das famílias reais e concretas, das pessoas e suas relações diversas. De fato há mudanças importantes nos papéis e no modo como pensamos a cidadania e os direitos. Essa reação conservadora está conectada com tais mudanças, com uma certa noção de desordem.
Nós temos grupos hoje defendendo a família contra as “ameaças” das mudanças na moral-sexual e que se organizam de modo a defender a redução de investimentos sociais do Estado, algo que tem como uma das principais consequências a redução da oferta de equipamentos públicos de cuidados. E, bom, as famílias ideais que esse grupo, então, supostamente defendem, têm o seu cotidiano muito precarizado pela baixa oferta de equipamentos públicos de cuidado.
Como você mencionou, a divisão sexual do trabalho dificulta a presença feminina na vida pública. Porém, quando temos mulheres que sobrepõe essa barreira – com a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), por exemplo, e a vereadora Marielle Franco (PSOL), do Rio de Janeiro – também há tentativa para deslegitimá-las, sejam verbais ou até físicas, no caso do extermínio de Marielle.
A representação política de mulheres no Brasil é escandalosamente baixa. Ela é baixa em todo o mundo, mas aqui, é escandalosa. No ranking da União Interparlamentar que mede a participação feminina no Congresso, o Brasil ocupa a 154º posição de 174 países. Na Câmara, cerca de 10% das cadeiras são ocupadas por mulheres.
Temos desde 1977 uma lei de cota para candidaturas femininas e só agora foi tomada a decisão de que 30% do fundo partidário deve ser destino à políticas mulheres. Essa decisão é óbvia: para efetivar essas cotas, temos que ter recursos para as campanhas de figuras femininas.
No entanto, apesar de uma representação escandalosamente baixa na vida pública no Brasil, temos alguns ganhos de legitimidade, até porque as mulheres vêm atuando à sua maneira em diferentes espaços. E como consequência da atuação delas, existe essa situação curiosa em que há uma forte reação às mulheres na política. Mesmo tendo uma presença tão baixa, a reação de caráter sexista existe.
O que me chama atenção é que, em 2011, enquanto produzia o livro Caleidoscópio Convexo, com coautoria com de Luis Felipe Miguel, sobre presença de mulheres políticas na mídia brasileira, nós constamos que as expressões sexistas mais extremadas, os estereótipos de gênero mais fortes, não estavam presentes mais nos meios de comunicação. E a gente chegou a conclusão, na época, que as manifestações de sexismo mais fortes não cabiam mais na mídia.
Porém, hoje, parte dessa reação é, de novo, alargar esse âmbito da permissividade do sexismo, da misoginia. Dilma Rousseff foi deposta sendo a mulher política que chegou mais longe em termos de carreira política no país, então só isso já seria um dado. Mas, para além disso, a campanha foi bastante misógina. Tiveram diversas manifestações extremas com teor de estereótipo de gênero como uma recusa à legitimidade da participação política das mulheres e à competência delas por serem mulheres.
Além disso, vimos os votos que consagraram seu impeachment na Câmara dos Deputados serem feitos em nome da “família”. Isso é um registro do modo dessas reações conservadoras. Podemos nos perguntar sobre quem que eles estão querendo colocar de fora quando diziam “esse voto é pela família”. Quem eles entendem que estava contra a família?
Isso tem a ver, claro, com a maior permeabilidade do governo do PT aos movimentos feministas e aos LGBT, mas o período Dilma não foi um período particularmente produtivo para ambas as correntes. Isso é um reflexo e uma reação, então, à mulher e à agenda de gênero.
Outro ponto é que essa reação não se dá apenas no plano simbólico. A violência contra as mulheres na política tem aumentado. Ela é verbal, mas também é física, é feita de ameaças, assim como de assédio. Temos como exemplo esse caso extremo do assassinato político da vereadora Marielle Franco. Essa é a uma referência com a qual temos que lidar. Trata-se de um assassinato político de uma mulher com características que são, ao mesmo tempo, bastantes representativas do ponto de vista do perfil das mulheres brasileiras, e que são, então, peculiares do ponto de vista da agenda que ela defendia.
Acho interessante pensar na Marielle como alguém que tinha uma agenda feminista e ao mesmo tempo tinha a absoluta clareza do que significa, por exemplo, o assassinato dos jovens negros na periferia para outras mulheres. Quero dizer, esses jovens negros são os filhos das mulheres que estão ali, na periferia. Isso quer dizer que há um jogo complexo de reações conservadoras que nega a maternidade voluntária e o direito ao aborto e, ao mesmo tempo, nega condições para que as mulheres criem os filhos que elas têm.
Essa violência [contra Marielle] ganha uma nova forma com a eliminação de alguém que tem um perfil ligado a uma agenda feminista e com uma clara compreensão do que significa a violência de Estado no Brasil contra mulheres negras na periferia. É um caso emblemático que eu defendo como violência contra mulher na política.
Apesar de toda essa estrutura social e de todos os obstáculos pela frente, como você enxerga a luta da mulher e o futuro do feminismo? Acredita que chegaremos a um resultado positivo?
Primeiro, quero deixar um recadinho aos conservadores de plantão: não há mais volta. [Risos.]. As pautas estão colocadas, as mulheres cada vez mais exigem ser ouvidas. Diferentes mulheres, de diferentes classes sociais e posições. Eu entendo que não podemos subestimar a ofensiva conservadora porque ela pode ter consequências muito sérias e a violência que está presente nela é algo muito arriscado, mas as transformações sociais estão colocadas e elas não têm volta.
Entendo que hoje os feminismos permitem que as mulheres que já não se identificam com papéis convencionais articulem uma nova identidade para elas, uma compreensão sobre quem elas são no mundo. Por mais diferentes e heterogêneas que sejam as agendas feministas, elas estão fornecendo uma linguagem capilar bastante atuante nas novas gerações. Esse é o resultado do acúmulo de décadas de mulheres dizendo “esses papéis não aceitamos mais”.
Acredito, no entanto, que existe um risco no Brasil e em outros lugares do mundo processos em curso a respeito do fechamento da democracia, o que significa uma distância ainda maior entre os espaços políticos e as falas das pessoas no cotidiano. Algo que os feminismos denunciam desde sempre, que é esse apartamento da política em relação à vida cotidiana, pode se aprofundar.
E se ele se aprofunda e nós ficamos falando em uma outra dimensão, existe um risco muito grande pois, para que exista a igualdade de gênero, temos que transformar o Estado e as relações entre Estado, mercado e o cotidiano de vida das pessoas. Temos que ser capazes de transformar as necessidades em pauta política legítima.
Temos que ouvir as mulheres, mas essas vozes têm que ganhar possibilidade de estarem de fato nos espaços em que as decisões são tomadas. E não as vozes de quaisquer mulheres, mas àquelas que estão colocando na cena pública um desafio de que as figuras femininas sejam parte da configuração da vida política e da vida social, e não corpos sobre os quais essa sociedade se constrói. Seja pela exploração do trabalho delas ou por meio da violência sexual. Precisamos parar de empilhar corpos e de fato considerá-las como sujeitos de igualdade no espaço político.
*Com supervisão de Isabela Moreira.