(CFEMEA, 08/09/2014) Entrevista com Patrícia Rangel, doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília e colaboradora do CFEMEA.
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CFEMEA – Quais foram as principais mudanças das eleições de 2010 para este ano?
Patrícia Rangel – A mudança está no percentual de candidaturas mulheres, que cresceu em relação ao pleito anterior. Com base nos dados preliminares das candidaturas disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral, observamos que, este ano, as mulheres são 30,5% do total de candidatos a todos os cargos. Elas são 29,1% das candidaturas a deputado estadual (nas últimas eleições nacionais, em 2010, representaram 21,1%), 29,6% das candidaturas ao cargo de deputado federal (19,4%, em 2010), 19,7% dos candidatos a senador (13,3%, no último pleito) e 10,5% das candidaturas aos governos estaduais (em 2010, as mulheres representaram 11% do total). Observa-se, portanto, aumento percentual nas candidaturas de mulheres em todos os cargos, inclusive nos que não são impactados pela cota (cargos de senador e governador).
CFEMEA – Sabemos que este ano tivemos o maior número de mulheres candidatas em eleições gerais, o que você acha disso? É um avanço?
Patrícia Rangel – É um avanço no que se refere à implementação formal da cota e à candidatura de mulheres, mas que não necessariamente resolve o problema da sub-representação política delas ou demonstra mudanças na cultura política. A cota existe há quase 20 anos: foi criada em 1995 (Lei 9.100/95) e sofreu duas modificações (nas leis 9.504/97 e 12.034/09), reservando um percentual das vagas de candidaturas (20%, 30% e 30%) em eleições proporcionais (Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais) para o sexo minoritário (na prática, para as mulheres). O que os dados de 2014 apontam é que os partidos políticos não estão tendo tanto descaso com a cota quanto antes e que estão oferecendo mais mulheres candidatas também aos cargos majoritários, não impactados pela cota. O CFEMEA, que acompanha os resultados das eleições com ênfase na participação política das mulheres desde as eleições municipais de 1996 e monitora o impacto da lei de cotas por sexo, já denunciou diversas vezes o pouco caso que partidos faziam do mecanismo de ação afirmativa. Nas duas primeiras versões do instrumento, por exemplo, eles lançavam mão de uma cláusula de escape: o texto da lei permitia cada partido ou coligação a registrar candidatos em até 150% do número de lugares a preencher, dando a eles a possibilidade de apresentar uma lista completa de candidatos sem incluir sequer uma mulher e sem violar a regra. Com a ausência de penalidades, as cotas não eram corretamente aplicadas, dando um efeito de caráter simbólico, não efetivo, à legislação. Isto mudou nas eleições municipais de 2012, quando, pela primeira vez, os partidos respeitaram a lei de cotas devido à reforma do texto em 2009 e às ameaças da Justiça Eleitoral de impugnação de candidaturas masculinas com vistas a manter a proporção 30%-70% exigida por lei (em 2012, tivemos 30,3% de candidatas a todos os cargos, percentual semelhante ao de 2014). Contudo, naquele pleito, surgiu um novo problema, que é o que nos preocupa agora: a inscrição de candidatas laranja. Tememos que a obrigatoriedade das cotas não altere a forma como se faz política eleitoral, permanecendo limitada ao aspecto formal e numérico, incluindo mulheres “só para constar”. Infelizmente, apesar das cotas, os partidos políticos não investem capital financeiro e político em candidaturas de mulheres. Então, sim, temos mais mulheres candidatas hoje do que em 2010, mas ainda é cedo para comemorações: resta saber se o incremento de candidaturas traduzir-se-á em mais mulheres eleitas! Isso não ocorreu nas eleições municipais de 2012, por exemplo, apesar de o número de candidatas ter sido muito superior ao pleito de 2008. É preciso um grande compromisso dos partidos políticos, da justiça eleitoral e, claro, do eleitorado.
CFEMEA – Você acredita que teremos mais mulheres no poder a partir de 2015?
Patrícia Rangel – Espero que sim. Contudo, isso vai depender dos partidos políticos. Se, a exemplo de 2012, eles lançarem mulheres como laranjas, só para preencher as vagas de candidaturas reservadas ao sexo minoritário, não teremos mais mulheres no poder em 2015 (naquele pleito municipal, as mulheres foram 3,3% das candidaturas, mas somente 13,4% dos vereadores e 11% dos prefeitos então). A verdade é que os partidos políticos pouco têm feito para alterar suas práticas cotidianas e compreenderem que a presença das mulheres também é sinônimo de democracia. Como instituições conservadoras e machistas que são, preferem convocar candidatas laranjas e continuar repetindo a frase “mulheres não se interessam por política, a culpa não é nossa”, como que entoando um mantra. Mantra este que é uma grande falácia. Sabemos que a sub-representação parlamentar de mulheres e o baixo número de candidatas não é fruto da falta de interesse por parte delas, e sim resultado de um processo cultural e institucional muito complexo. Grosso modo, os motivos dessa sub-representação vão desde fatores culturais até o sistema político, mas são sempre estruturais, ancorados em valores de sistemas ideológicos excludentes como o patriarcado e o capitalismo. Sabemos também que essa sub-representação não é responsabilidade exclusiva do eleitorado. Como afirma Iáris Cortes, uma das fundadoras do CFEMEA, ao mesmo tempo em que a população brasileira reconhece a importância das mulheres no poder, ao eleger a primeira mulher presidenta do país, pouca coisa avança no cotidiano da ação política, especialmente via partidos políticos, que são as instâncias que determinam o acesso à política institucional e que têm papel importante na mudança do sistema político. Pesquisas mostram que os eleitores estão cada vez mais simpáticos à entrada das mulheres na política eleitoral: 74% sustenta que a garantia da democracia depende da presença de mulheres nos espaços de poder e 78% acha que os partidos devem apresentar uma lista de candidatos composta por metade de homens e metade de mulheres (pesquisa Instituto Patrícia Galvão e Ibope, 2013).
CFEMEA – O TSE havia anunciado o recorte de raça/cor para os candidatos deste ano, isso não aconteceu? Não temos como saber quantas mulheres negras, por exemplo, são candidatas?
Patrícia Rangel – Isso mesmo: atualmente, não há dados oficiais com o recorte de raça/etnia, tampouco políticas de ação afirmativa para candidaturas de pessoas negras. Durante os debates da reforma eleitoral de 2009, o movimento feminista apresentou uma proposta para que se incluísse o campo raça/cor nas listas de candidaturas, a exemplo do que acontece com a categoria “sexo”. A sugestão não foi acatada na ocasião. Quase quatro anos depois, contudo, o TSE declarou que consideraria a inclusão do item raça/cor no processo eleitoral e que iniciaria uma série de preparativos para implementar esta ação nas eleições de 20141. Construindo um banco de dados com essas informações, o tribunal contribuiria para apontar a sub-representação de mulheres e homens negros e também para indicar a necessidade de desenvolver mecanismos de discriminação positiva e políticas afirmativas, assim como foi feito com as mulheres (sem levam em consideração sua cor ou seu pertencimento étnico). Contudo, isso não aconteceu!
Apesar de não haver dados oficiais do TSE sobre candidaturas com recorte de raça/cor, há dados desta natureza sobre representantes eleitos no Parlamento, que mostram a profunda sub-representação de mulheres negras. A pesquisa “Como Parlamentares Pensam os Direitos das Mulheres” (CFEMEA, 2009) encontrou, em sua amostra, apenas 3% de senadores/as e deputados/as federais que se declaravam de cor preta (as opções era branco/a, preto/a, pardo/a, amarelo/a e indígena). Sabemos que o espaço da representação política, além de ser exclusivo dos partidos políticos é, em sua quase totalidade, ocupado pelos homens brancos. A perduração desta situação é inaceitável do ponto de vista dos princípios democráticos e de justiça de gênero e de raça/etnia. O sistema político brasileiro ainda se mantém impermeável às demandas por igualdade, resistente às nossas conquistas, insensível às transformações que o feminismo operou na sociedade. E até o momento, apesar dos conflitos, tem servido para reproduzir e manter os privilégios de gênero, classe e raça e, também sob esta perspectiva, tem de ser transformado. A reforma política é um dos caminhos para tal mudança. O feminismo antirracista tem feito uma crítica profunda à democracia liberal, apontando que o sistema político e eleitoral tal como está colocado é incompatível com uma democracia real capaz de incluir os segmentos sociais que foram historicamente marginalizados (Para conhecer em detalhes estas propostas, recomendo a leitura de uma publicação do CFEMEA: “Agenda Feminista para a Democratização do Poder na Reforma Política”. Também é interessante conhecer a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
CFEMEA – O que nós, eleitores, podemos fazer para contribuir com a igualdade de gênero na política?
Patrícia Rangel – Combater a sub-representação das mulheres na política eleitoral também é papel de todas e todos nós, cidadãs e cidadãos. Não podemos deixar tudo nas mãos dos partidos políticos e da justiça eleitoral! Minha opinião de militante e pesquisadora é que a presença das mulheres em espaços de poder e decisão é uma questão de democracia e possui, sim, capacidade de influenciar a agenda política. Como argumenta a professora Lucia Avelar, sem mandatos ou influência sobre os poderes públicos, a construção da igualdade é mais lenta e difícil. É necessário, portanto, eleger mais mulheres. Mas isso não basta! É preciso eleger mais mulheres com consciência de sua situação de marginalização, que defendem plataformas de equidade, que percebam que a desigualdade de gênero é estrutural e que todas as soluções para esse problema devem ser coletivas. É preciso haver a combinação de uma política de presença (mais mulheres em espaços políticos institucionais) com uma política de idéias (defesa de uma agenda de equidade de gênero). Em outras palavras, precisamos de mais mulheres feministas no poder. Portanto, minha sugestão é que eleitores preocupados com a igualdade entre homens e mulheres busquem candidatas engajadas em movimentos feministas e em lutas pela igualdade racial. Hoje, graças às redes sociais, temos novas ferramentas para facilitar essa pesquisa. Um exemplo é a comunidade recentemente lançada no Facebook, “Vote numa Feminista” (www.facebook.com/votenumafeminista), que já recebeu mais de sete mil likes. A descrição aponta que a página tem dois objetivos: “demonstrar como a participação feminista no poder legislativo é importante e dar visibilidade a candidatas declaradas feministas de qualquer partido”.