(Clam) “Para que listas partidárias sejam instrumentos de democratização e de inclusão de setores mantidos fora das casas legislativas, como as mulheres e os negros, entre outros, devemos pensar em um sistema onde a lista seja democraticamente organizada, contando com a participação de todos os filiados de cada partido. Isto aumentaria inclusive o poder dos partidos. A lista organizada por elites partidárias, como parecem ser as propostas que tramitam nas duas casas legislativas, são desastrosas”, opina a cientista política Céli Regina Pinto, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na entrevista publicada no site do Clam (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Reprodutivos), a pesquisadora também critica o conservadorismo do Congresso, que tem dificuldades para lidar com matérias relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos. Leia a entrevista na íntegra:
“Aprovada recentemente pela Comissão de Reforma Política do Senado brasileiro, a proposta de cotas de candidatura (50% das vagas) destinadas às mulheres nas eleições proporcionais, sob o regime do voto fechado – quando o voto é dado ao partido, que apresenta uma lista de candidatos -, é mais uma tentativa de solucionar os baixos índices de participação feminina nas instituições políticas e, principalmente, nos cargos eletivos.
A proposta representa um avanço em relação à regra atual, que determina que 30% das candidaturas sejam ocupadas por mulheres. No entanto, na prática, esses 30% não surtiram efeito, pois a própria Justiça Eleitoral flexibilizou a norma diante da dificuldade dos partidos em cumpri-la. Atualmente, vigora o regime de lista aberta, onde os eleitores votam no candidato.
Em meio a um processo de discussão para uma reforma política que se arrasta há anos no Brasil, as desigualdades de gênero permanecem como um aspecto com muitas propostas e soluções ainda por vir. No Congresso brasileiro, a representação feminina é baixa – das 513 cadeiras na Câmara Federal, apenas 44 são ocupadas por mulheres deputadas e, no Senado, são apenas 13 senadoras para 68 senadores. Além disso, quando as questões são ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, as dificuldades não cessam, em função da atuação permanente da bancada religiosa.
Em entrevista ao CLAM, a cientista política Céli Regina Pinto, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), analisa a proposta em tramitação no Senado, discute a sub-representação da mulher no Legislativo e a inserção no Judiciário e no Executivo e lamenta o uso de questões relacionadas aos direitos reprodutivas e sexuais como barganha política.
A Comissão de Reforma Política do Senado aprovou, recentemente, proposta que cria cotas para as mulheres nas eleições, dentro do sistema de listas fechadas. Como a senhora avalia essa iniciativa?
Sou de opinião que o sistema de listas fechadas em si não traz garantia alguma de uma melhor representação, seja de qual for o segmento da população. Mesmo cotas no interior das listas não é uma garantia. O sistema de listas fechadas, para apresentar um diferencial em relação ao sistema de lista aberta, deve trazer consigo uma profunda reformulação na lei partidária, impedindo a reprodução de burocracias oligárquicas, que existem em todos os partidos políticos brasileiros, independente de filiação ideológica. Para que listas partidárias sejam instrumentos de democratização e de inclusão de setores mantidos fora das casas legislativas, como as mulheres e os negros, entre outros, devemos pensar em um sistema onde a lista seja democraticamente organizada, contando com a participação de todos os filiados de cada partido. Isto aumentaria inclusive o poder dos partidos. A lista organizada por elites partidárias, como parecem ser as propostas que tramitam nas duas casas legislativas, são desastrosas.
A pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados”, realizada no final de 2010 pela Fundação Perseu Abramo e pelo SESC, mostrou que 80% das mulheres julgam a política como importante e 70% delas acreditam que a política seria melhor se mais mulheres estivessem em postos importantes. No entanto, a presença de mulheres no Senado representa apenas 15% do total de senadores e na Câmara menos de 10%. Que fatores motivam a sub-representação da mulher no Congresso?
Esta é uma resposta difícil, pois a ausência da mulher decorre de um conjunto complexo de fatores. Pelo lado do sistema político, podemos elencar o financiamento privado de campanha; o sexismo presente em todos os partidos políticos; o conservadorismo das elites políticas brasileiras que não admitem discutir questões como o aborto, a união civil entre casais do mesmo sexo, entre outros direitos. Neste ambiente minado por um pensamento muito retrógrado, com influências quase medievais da Igreja Católica e de outras denominações cristãs, a entrada das mulheres encontra muitas barreiras. Por outro lado, temos a própria dificuldade das mulheres em se colocar no mundo público, as dificuldades de duplas e triplas jornadas de trabalho. Mesmo que mascarada, a responsabilidade pela gerência da família, principalmente da vida dos filhos, é das mulheres.
Como analisa a representação da mulher nos poderes Judiciário e Executivo?
As mulheres entram no Judiciário por concurso público e têm tido um grande êxito em conquistar as melhores colocações em concursos para juízes, por exemplo. Também no Ministério Público as mulheres têm se destacado nos concursos. Portanto, trata-se de uma conquista delas, e não que este poder seja mais ou menos aberto às mulheres.
No caso do Executivo, as mulheres têm mais possibilidade: primeiro, porque as que chegam a esta disputa não são a média dos políticos em seus respectivos partidos, mas sim mulheres que tiveram grande destaque. Segundo, os eleitores brasileiros não deixam de votar em mulher quando há uma relação direta entre candidata-partido-ideologia; mas quando há muitos candidatos no mesmo espectro político as chances das mulheres diminuem sensivelmente. Portanto, um petista ou um peemedebista não deixaria de votar no candidato de seu partido para a Presidência da República por ser uma mulher, mas quando tem escolha entre vários candidatos dentro do partido, parece que a decisão é diversa.
Discussões que envolvem valores morais enraizados no Brasil, relacionados a sexualidade, gênero e reprodução, resultam em polêmicas e impasses em nível de legislações, políticas públicas e eleições. Na campanha presidencial de 2010, o aborto gerou fortes embates. Neste ano, a distribuição do kit anti-homofobia, que seria entregue em escolas do ensino médio, foi suspensa pela presidente da República em função de acordos políticos com a base aliada. Que implicações o uso dessas questões como barganha política traz para as ações no campo dos direitos sexuais e reprodutivos?
Estes temas têm grandes dificuldades de serem tratados no Congresso Nacional, devido ao profundo conservadorismo de costumes em nosso país, um país fantasiado de liberal em uma teledramaturgia de baixo nível. A influência da Igreja Católica nos assuntos políticos, colocando-se em uma posição que não lhe cabe, pois o Estado é laico, têm sido desastrosa para a discussão destes temas. Soma-se a isto a bancada evangélica, tão retrógrada nos temas de costumes, principalmente nos que concernem a direitos sexuais e reprodutivos, quanto a Igreja Católica. Não se pode enfim deixar de enfatizar a triste barganha que existe entre o poder Legislativo e o poder Executivo, fazendo com que candidatos à Presidência da República, como foi o caso em 2010, se travestissem de religiosos de ocasião, para conseguir votos de lideranças religiosas.”
Acesse em pdf: Gênero e política: barreiras que persistem, por Céli Pinto (Clam – 06/07/2011)
Contato com a autora:
Céli Pinto – cientista política e pesquisadora
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS
Porto Alegre/RS
(51) 3308-6872 / 3383-1412 – [email protected]