11/03/2012 – Cármen Lúcia, comandante das eleições, luta pelas liberdades

11 de março, 2012

(Carolina Brígido, de O Globo-DF) Cármen Lúcia foi a favor da união civil entre homossexuais e da livre manifestação em defesa das drogas

Todos os dias às 5h30m o sininho tocava. Ainda não tinha amanhecido quando a fila de moças do Sacré Coeur de Marie, tradicional internato de Belo Horizonte, aguardava para usar o chuveiro. Cármen Lúcia contava dez anos de idade. Seus pais ficaram em Espinosa, a 690 quilômetros. Viam-se nas férias. Era o jeito encontrado para ter acesso a um ensino de qualidade. Hoje ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e prestes a entrar na história como primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia ainda acorda às 5h30. Mas ao som do despertador, para elaborar seus votos.

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Embora seja grata aos pais por lhe proporcionar os estudos, a ministra conta que os anos de isolamento e disciplina rigorosa foram sofridos. Hoje, sabe dar o devido valor à liberdade, um conceito que preza nas decisões judiciais. No ano passado, votou pelo direito de casais homossexuais registrarem a união civil em cartório e pela liberdade de manifestação a favor do uso de drogas em passeatas.

— Por isso eu batalho tanto pela liberdade, porque eu sei o que é não ser livre — diz.

“Ser juíza não é uma profissão fácil”

A partir de abril, Cármen estará empenhada em comandar as eleições municipais de outubro, em que os brasileiros escolherão prefeitos e vereadores. Isso sem abdicar de sua cadeira no STF, onde serão julgadas questões decisivas para a vida nacional – como o processo do mensalão, a possibilidade de abortar quando o feto não tem cérebro e demarcações de terras indígenas e quilombolas.

— Ser juíza não é uma profissão fácil. Você fica atormentada para fazer o que é certo do ponto de vista jurídico e da justiça. Se o fardo é difícil, pelo menos faço de maneira absolutamente honesta. Na hora em que eu for embora, quero que saibam que fui honesta sempre. Eu estou tentando acertar, espero que tenham piedade nesse sentido com a gente — afirma.

No STF, a ministra também costuma defender os direitos humanos e as minorias. Tem como constantes companheiros no voto os ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Celso de Mello. Em direito penal, é rigorosa: costuma votar pela abertura de ação penal, mesmo que não haja indícios fortes de participação do acusado. Defende que o processo deve ser instaurado para garantir o esclarecimento dos fatos. No plenário, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli são de corrente oposta neste quesito.

Em fevereiro, o STF abriu ação penal contra o senador João Ribeiro (PR-TO) por manter em sua fazenda 35 trabalhadores em condições análogas à de escravo. Foram narradas condições de higiene e saúde precárias. Cármen se sensibilizou e votou pela abertura do processo, junto com seis colegas.

Também em fevereiro, ela votou a favor da validade da Lei da Ficha Limpa para as eleições deste ano. A norma impede a candidatura de condenados por um colegiado.

— O ser humano se apresenta inteiro quando ele se propõe a ser o representante dos cidadãos, pelo que a vida pregressa compõe a persona que se oferece ao eleitor, e o seu conhecimento há de ser de interesse público, para se chegar à conclusão quanto à sua aptidão que a Constituição Federal diz, moral e proba, para representar quem quer que seja — disse no julgamento.

No início de março, Cármen votou, com a maioria dos colegas do TSE, para que políticos com contas de campanha de anos anteriores reprovadas pela Justiça Eleitoral sejam impedidos de se candidatar.

— A tentativa é de cada vez mais fazer com que os princípios éticos da Constituição sejam respeitados. Nosso dever é o de respeitar a Constituição — diz ela.

Cármen é solteira e não teve filhos. Aos 55 anos, tem uma rotina “monástica”, segundo definição dela mesma. Escreve votos pela manhã, toma o café, vai para o STF, recebe advogados e partes em processos, participa das sessões de julgamentos à tarde. À noite vai para a sessão do TSE. Trabalha também nos sábados e domingos. Não faz exercícios físicos.

Nos fins de semana, encontra uma brecha para ver os amigos. Gosta de recebê-los em casa, um amplo apartamento funcional na Asa Sul decorado com simplicidade. Lá, conversam sobre livros e música, duas de suas paixões. A cada dois meses vai a Belo Horizonte, onde mantém um apartamento. Aproveita para ver a família e para ir ao cinema, outra paixão.

“Mulher continua sinônimo de sofrimento”

A ministra se veste com simplicidade, usa maquiagem discreta e deixa os fios brancos dos cabelos à mostra. É mineira típica, daquelas que não recusam pão de queijo com dois dedos de prosa. Gosta de contar “causos”. Esses dias, contou no plenário que tomou um táxi e o motorista disse, indignado, que já deixam até mulher ser ministra do STF hoje em dia. Não sabia que transportava uma delas.

Também no plenário, quando o STF julgava a validade da Lei Maria da Penha mesmo quando a denúncia não for feita pela vítima, Cármen fez um discurso contra a discriminação de gênero. E disse que sofre na pele o preconceito.

— Ainda que titularizando um cargo que nos dá o direito a um carro oficial, vemos no olhar daquele que passa que estamos usurpando a posição de um homem. Imagina-se a esposa de alguém que deve estar trabalhando, enquanto ela está fazendo compras. Às vezes acham que juíza desse tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre! Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa sem saber que eu era uma dessas. A mulher foi e continua sendo grandemente sinônimo de sofrimento, de dor — afirma a ministra.

Depois do Sacré Coeur, Cármen formou-se na Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em 1977. Concluiu o mestrado em Direito Constitucional na Universidade Federal em 1982. Foi advogada, procuradora do Estado de Minas Gerais e professora da mesma instituição onde se graduou. Tomou posse no STF em junho de 2006, nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É ministra do TSE desde novembro de 2011.

Acesse em pdf: Cármen Lúcia, comandante das eleições, luta pelas liberdades (O Globo – 11/03/2012)

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A ministra Cármen Lúcia torna-se a 1ª presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Por 6 votos a 1, ela venceu Marco Aurélio de Mello, que já comandou a corte, e estará à frente dos pleitos municipais deste ano, em substituição a Ricardo Lewandowski. Defensora declarada do direito das mulheres nas sessões do STF, a ministra foi uma das principais defensoras da Lei da Ficha Limpa
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