22/09/2012 – Voto feminino – Oitenta anos de urna

22 de setembro, 2012

(O Globo) Daqui a duas semanas, 71,6 milhões de mulheres decidirão os próximos prefeitos e vereadores do país. Como, desde 2000, elas correspondem a mais de metade do eleitorado, sua participação será crucial. Estatísticas impensáveis um século antes, quando os cavalheiros monopolizavam as urnas, e as poucas iniciativas individuais para acabar com esta exclusividade foram vetadas pela Justiça. A perseverança fez do Brasil um dos pioneiros na conquista do sufrágio feminino— adotou-o no Código Eleitoral de 1932, antes de países como França, Itália e Japão. Mas a luta parece ter esmorecido. Num ranking da ONU que avalia a participação feminina na política, o Brasil, hoje, ocupa a 144ª colocação entre 188 nações.
 
Amparada por uma lei que garantia o direito de voto a portadores de títulos científicos, a cirurgiã dentista gaúcha Isabel de Souza Matos reivindicou, em 1885, o seu alistamento eleitoral. O processo viu a troca do Império por uma República e, já no novo regime, foi julgado improcedente. Quase à mesma época, em 1891, outra Isabel, a Dillon, tentou apresentar-se como candidata a deputada na Bahia. Também atendia às condições: a Lei Eleitoral assegurava o direito de voto aos maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, sem referência explícita ao sexo.

Isabel fez campanha e prometeu defender a liberdade religiosa. Mas também foi barrada nas urnas.

 
As “isabéis” serviram de lição para as feministas do início do século XX. O Rio, então capital da República, foi palco de uma série de manifestações contra o que chamavam de “cidadania incompleta”, movimento majoritariamente condenado pela elite — ao menos por sua parcela masculina. As sufragistas, como foram batizadas as militantes pelo direito do voto, fundaram, em 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.
 
— As feministas aproveitavam todo o espaço disponível para divulgar sua causa: escreviam cartas à imprensa, a autoridades, concediam entrevistas e pressionavam os parlamentares quando alguma matéria de seu interesse tramitava no Congresso Nacional — lembra Schuma Schumaher, coordenadora- executiva da Rede de Desenvolvimento Humano, que está escrevendo o livro “As herdeiras das sufragistas”. — Foi o caso de um projeto de lei que estendia o direito de voto às mulheres, apresentado pela primeira vez em 1919, mas que não teve andamento naquela legislatura. Elas evitavam confrontos abertos com instituições tradicionais, comparecendo em grupo às sessões públicas e promovendo ruidosas manifestações de ruas, como as realizadas pelas sufragistas inglesas.
 
PRIMEIRO VOTO NO RIO GRANDE DO NORTE
 
Oito anos depois, enfim, as feministas encontraram uma voz na Câmara. O deputado norte-rio-grandense Juvenal Lamartine assumiu a defesa do projeto e conseguiu aprová-lo no Legislativo. As mulheres retribuíram o favor. Foram a Natal, onde Lamartine concorria à presidência do estado, e sobrevoaram a cidade de monomotor, lançando panfletos de sua campanha.
 
— Lamartine foi eleito e, antes mesmo de assumir o cargo, articulou para que a nova lei eleitoral entrasse em vigor — assinala Schuma. — A pressão foi tamanha que seu antecessor sancionou a lei, abrindo a porta para uma avalanche de mulheres irem à Justiça do estado para garantir o seu direito de votar e de serem votadas.
 
A corrida foi vencida por Celina Guimarães Viana, uma professora da Escola Normal de Mossoró. Seu nome foi incluído entre os eleitores do estado no dia 25 de outubro de 1927.
 
Celina garantiu seu lugar na história política do Brasil, mas seu voto, e o de outras 800 mulheres que foram às urnas do Rio Grande do Norte, de nada valeu. Opositores do projeto de Lamartine apoiaram-se em questões burocráticas para que o sufrágio feminino voltasse ao fim da fila das discussões do Legislativo nacional. E lá permaneceu por cinco anos, enquanto as feministas reforçavam seu lobby no Palácio do Catete, agora tratando seus interesses diretamente com o presidente Getúlio Vargas — consolidando o processo que, enfim, garantiu o direito de sufrágio para elas no Código Eleitoral de 1932. O Brasil foi o segundo país da América Latina a garantir o direito de voto à mulher, atrás apenas do Equador. Mas a situação está longe de ser boa.
 
— Se colocarmos toda a história da democracia em um ano, imaginando que ela surgiu na Grécia no dia 1º de janeiro, as mulheres só entraram neste processo por volta do dia 15 de dezembro — compara Jairo Nicolau, professor do Departamento de Ciência Política da Uerj. — A Era Vargas foi uma ruptura da República Velha, e a expansão do sufrágio para as mulheres pareceu óbvia. Mas, para elas, a obrigatoriedade do voto só foi instituída em 1965. Para os homens, já valia em 1932.
 
Nas primeiras eleições gerais realizadas com o novo Código, foram eleitas apenas nove deputadas estaduais no país. Segundo o novo livro de Nicolau, “Eleições no Brasil” (Ed. Zahar), não existem estudos sobre o processo de alistamento durante a década de 1930 — particularmente sobre quantas mulheres se inscreveram para a primeira eleição. Mas, no pleito seguinte, em 1934, houve um incremento de 85% no número de votantes em relação aos que compareceram às urnas no ano anterior. Eles seriam, a partir de então, 2,66 milhões, 7% da população.
 
A MULHER NA POLÍTICA PARTICIPAÇÃO REDUZIDA
 
Entre os prefeitos que deixam o mandato em dezembro, 10% são do sexo feminino; dos vereadores, 12%. Uma participação pífia, cuja explicação desafia feministas e cientistas políticos.
 
Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e autora de livro “Coreografias do feminino” (ed. Mulheres), Carla Rodrigues acredita que as mulheres são mais ativas em movimentos não institucionalizados, enquanto os homens dominam os ambientes políticos. Para ela, falta criar estímulos que as estimule a concorrer a cargos públicos.
 
— É necessário haver uma consolidação das instituições democráticas — lembra. — As mulheres precisam emergir no ambiente político, porque, atualmente, elas são usadas apenas para cumprir a cota de 20% imposta pela lei aos partidos. Além disso, elas historicamente têm menos renda, o que dificulta o financiamento de suas campanhas.
 
Segundo o cientista político Jairo Nicolau, da Uerj, foi justamente o processo de democratização das sociedades que pôs o voto feminino na ordem do dia no início do século XX.
 
— Primeiro se incluiu o trabalhador; depois, a mulher — lembra. — O ambiente tornou impossível manter a restrição a um desses grupos, e ele passava de um país para o outro, principalmente na Europa, onde todos estão muito próximos. E o Legislativo brasileiro, na época, prestava muita atenção no que ocorria no Velho Mundo e nos Estados Unidos.
 
Quase um século depois, o último pilar da intolerância contra o gênero já tem data para cair. Em plena Primavera Árabe, a Arábia Saudita decidiu dar às mulheres o direito de votar e de se candidatar em eleições municipais a partir de 2015. Trata-se do o único país do mundo em que o voto feminino não é permitido em qualquer instância.
 
— Houve um retrocesso com o 11 de Setembro e o aumento do fundamentalismo, mas a emergência dos movimentos feministas pode ser um grande acontecimento no mundo árabe nas próximas décadas — opina Carla.
 

Acesse em pdf: Oitenta anos de urna (O Globo – 22/09/2012)

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