A socióloga Clara Araújo analisa a eleição da primeira mulher presidente do Brasil (APG)

03 de novembro, 2010

Em artigo exclusivo para a Agência Patrícia Galvão, a socióloga Clara Araújo, pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da UERJ, comenta a eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente da República do Brasil, e o significado -simbólico, político e real- do compromisso que assumiu em seu primeiro pronunciamento como presidente eleita: “honrar as mulheres brasileiras”.

Leia na íntegra:

Jogo político

“As brasileiras não estão só de parabéns pela eleição da primeira mulher à presidência do país. Estão reconfortadas pelo conteúdo da primeira mensagem da presidente eleita e também com expectativa ainda maior diante dos compromissos explicitados no seu primeiro discurso.

A campanha eleitoral foi marcada por manifestações conservadoras preocupantes, particularmente para um projeto igualitário e feminista. Neste jogo, entraram todos os candidatos, seja como ataque ou defesa. E não há como esconder o fato de que isso foi incensado por uma parte da mídia, em tentativa constante de desacreditar a então candidata e presidente eleita Dilma Rousseff. O que se viu nestes últimos meses foram discursos (nas chamadas das manchetes, nas notícias ou nas suas entrelinhas) carregados de preconceitos velados ou explícitos.

Sem entrar no mérito das formas mais acintosas de conservadorismo que vieram à baila, estimuladas, em parte pela própria mídia, cabe aqui ressaltar, particularmente, o trabalho incessante de tentativa de descrédito, por meio de constantes afirmações sobre sua “inexperiência política”, de sua caracterização, ora como um mero “instrumento” de presidente Lula ora como “mandona” e/ou autoritária. Um trabalho de “despersonalização” surpreendente e agressivo. Passou-se por cima de mais de 30 anos de luta e participação política constante da agora presidente (quer discordemos ou não de algumas de suas formas), reduzindo-se a política fundamentalmente à sua expressão eleitoral, esta, aliás, sempre criticada e associada  pela mídia com interesses pessoais e corrupção. 

Desconsiderou-se, também, a trajetória da então candidata, que ocupou vários cargos político-partidários e, sobretudo, administrativos em executivos governamentais, em diferentes esferas e, em especial, na esfera federal, cargos que a credenciavam, portanto, a exercer o mandato político e executivo de Presidente da República. Todas essas décadas e sua história de ocupar cargos por seus próprios méritos e posições políticas não foram consideradas como algo capaz de lhe possibilitar opiniões próprias. 

Qualquer que fosse o candidato/candidata existiriam estratégias de ataque que buscariam fragilizálo/a. É do processo eleitoral, é parte do jogo democrático, como se diz. Contudo, tenho dúvidas de que, se fosse um homem, tais estratégias teriam assumido as características que assumiram: a de defini-la como incapaz, carente de opiniões e de projetos políticos próprios; ou, ao contrário, se tinha opiniões e porque as expressava, estas tendiam a ser definidas como autoritárias. 

Como já se observou, a exclusão histórica de que foram objeto gerou essa sensação de que as mulheres estão “fora do lugar” na política. E se tal sensação já não existe como algo generalizado na sociedade (como me parece), trata-se de retomá-la e alimentá-la como instrumento de exclusão repaginado. Neste caso, ora como autoritária ora como carente de idéias próprias, “veículo” do presidente Lula. Diante das investidas e de suas repercussões, compromissos ou afirmações de conteúdo conservador que tentavam ganhar parte do eleitorado foram assumidos pelos candidatos e deixaram interrogações sobre seus desdobramentos. Por outro lado, vários e importantes temas que importavam para uma agenda de igualdade de gênero e que poderiam ser capitaneadas pelas mulheres candidatas foram secundarizados ou não foram sequer tocados.

Neste contexto, poder ouvir no discurso da Presidente eleita, com destaque inicial, seu compromisso de honrar as mulheres e perseguir  a igualdade de gênero permite certo alívio. Pode ser lido como preocupação em preservar os princípios igualitários e reconhecer o protagonismo e o legado  feminista para uma sociedade justa. Ao fazê-lo abre espaço, também, para que os movimentos de mulheres apresentem para o governo e para a sociedade a agenda que, por falta de oportunidade, não foi apresentada durante a campanha. O efeito simbólico de uma mulher como presidente da República de um país do tamanho do nosso e com o lugar que vem ocupando no cenário internacional pode ser enorme. E a presidente eleita soube destacar isto em seu discurso. E foi por sabê-lo que assumiu o “compromisso de honrar a mulher”. Não através das formas tradicionais que  emergiram durante a campanha, mas honrar a mulher que quer trabalhar e ter sua autonomia; quer fazer escolhas sem que estas sejam dicotômicas: ou mãe ou profissional, ou profissional ou amada, entre outras falsas escolhas…honrar as jovens e meninas que poderão ter em seu exemplo um estímilo para maior ingresso e participação política, sem medos. Por fim, ao colocar a igualdade entre homens e mulheres como princípio essencial da democracia, Dilma retira a temática de “âmbitos específicos” , como quase sempre é colocada na agenda política, e a coloca em seu devido lugar. Antes tarde do que nunca. Compreendo a trajetória – pessoal e política- da presidente eleita, por si, uma expressão de prática feminista. Por isto acredito na sinceridade de sua manifestação. Mas isto não é suficiente na política. O compromisso que expressou foi além e sugere disposição de cumpri-lo. Mas também não será suficiente se os movimentos feministas e de mulheres não fizerem deste um marco para  a agenda de políticas públicas e um instrumento de luta. Não porque a presidente eleita não queira levá-lo a termo ou porque tenha sido  mera retórica inaugural. Acredito no que falou. Mas porque o jogo político é o que se viu no processo eleitoral; e a política depende de pressões e ação coletiva. E é este protagonismo, organizado e coletivo que os movimentos estão chamados a exercê-lo, se não quiserem preservar direitos e avançar na igualdade de gênero.”     

Contato com a autora

claraaraujo130Clara Araújo – socióloga e pesquisadora
Departamento de Ciências Sociais da UERJ
Rio de Janeiro/RJ
(21) 2587-7678  
[email protected]

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