TRAÍDAS PELA RENATA

06 de setembro, 2019

Deputada acusada de usar candidatas laranjas agora quer flexibilizar cotas eleitorais para mulheres; bancada feminina entra em guerra contra “lei da maridocracia”

(Piauí, 06/09/2019 – acesse no site de origem)

Ré em duas ações sigilosas sob acusação de ter enganado candidatas para preencher a cota de mulheres na eleição de 2018, a deputada federal Renata Abreu (SP), presidente nacional do Podemos, decidiu legislar em causa própria. Provocou um racha na bancada feminina ao propôr um projeto de lei que flexibiliza o percentual de 30% de cotas para candidatas e, de quebra, reduz problemas como os enfrentados por ela na Justiça Eleitoral. O projeto de Abreu mantém como meta a cota mínima de 30%, mas abre uma brecha para que ela não seja alcançada – desobrigando, na prática, os partidos de reservarem 30% das candidaturas para mulheres, sem impor novo piso. A sigla que não cumprir essa cota perde as vagas ociosas, mas mantém os 30% de repasses do fundo eleitoral para as mulheres.

As ações contra Abreu foram apresentadas pelo Ministério Público eleitoral de São Paulo, sob acusação de que o Podemos recorreu a candidatas laranjas em 2018. As candidatas afirmaram ter sido usadas pela deputada apenas para preencher a cota feminina – sem nunca receber as contrapartidas prometidas, como recursos e estrutura de campanha. Segundo as denúncias, o Podemos preencheu os 30%, com vinte candidaturas femininas a deputada federal em São Paulo, mas não deu condições para que as candidatas tocassem suas campanhas, fazendo com que elas fossem posteriormente enquadradas como laranjas. A promotora Vera Lúcia Taberti, que acolheu as denúncias, avalia que o projeto de lei, se aprovado, enfraquecerá as ações em curso contra Renata Abreu. Se ele já valesse em 2018, aí “a ação não poderia nem ter sido proposta”. “O projeto autoriza, vamos supor, o preenchimento de vaga, depois as pessoas renunciam e só ficam aquelas que são as cartas marcadas. Favorece Abreu, não só em relação ao processo, como também o poder dela como presidente do partido para concentrar mais verba quando for candidata”, afirmou Taberti.

Hoje as duas ações (uma resultante das denúncias de candidatas a deputada estadual e outra das candidatas a deputada federal) pedem a anulação dos mandatos da coligação do Podemos, formada com o PHS e o PMB. Esse desfecho é, contudo, considerado menos provável. “A Justiça Eleitoral é mais política do que jurídica e sempre protege a soberania do voto, a vontade do eleitor. Por isso é muito difícil cassar mandato e conseguir êxito numa ação na Justiça Eleitoral”, constatou Taberti.

As mulheres que denunciaram a presidente do Podemos ao Ministério Público afirmam que ela prometeu distribuir igualmente entre as candidatas do partido 30% dos 36 milhões de reais destinados pelo fundo eleitoral, mas na hora da eleição deixou quase todas à míngua. A única que recebeu recursos vultosos foi Heida Woo, aquinhoada com 700 mil reais. O repasse, segundo Abreu relatou a outras candidatas, seria o pagamento de uma dívida de seu pai, o ex-deputado José de Abreu, ao marido de Heida, o ex-deputado William Woo. Para as outras postulantes, sobrou pouco. Houve quem não conseguisse nenhum real dos fundos da legenda. A que mais recebeu levou 7 mil reais para a campanha.

Ao todo, Abreu destinou às correligionárias 900 mil reais, mas aplicou 2 milhões de reais na própria candidatura. O restante do dinheiro foi usado em todas as outras candidaturas de homens e mulheres pelo país, inclusive a cargos majoritários. Em outubro, a presidente do Podemos foi a única mulher eleita deputada federal por seu partido. “No início da campanha, em 2018, tivemos uma reunião. A deputada [Renata Abreu] pegou o microfone e disse que estava ali para alavancar as mulheres. Prometeu que todas teriam dignidade”, contou a advogada Noêmia Fonseca, que foi candidata pelo Podemos e representa outras doze mulheres na ação contra Renata Abreu. Na ocasião, algumas mulheres que estavam desanimadas decidiram se candidatar. A presidente do Podemos foi ovacionada. “É muito abraço e tapinha nas costas. Aquele blá-blá-blá deu resultado, as pessoas saíram iludidas.”

Segundo Fonseca, o partido prometeu reservar 40 mil reais para sua campanha, mas sua prestação de contas aponta receita de apenas 7 mil reais. A candidata obteve 983 votos. “Fomos usadas sem o nosso consentimento”, justificou. Também há casos como o de Fernanda Andrade, que recebeu 2.200 reais do Podemos e obteve 240 votos, e da Dra. Rosangela Zizler, que investiu 6,7 mil reais do próprio bolso e conquistou 362 votos. Esses desempenhos reforçaram a hipótese de candidaturas de fachada, levando a Procuradoria Regional Eleitoral a incluir como réus todos os integrantes da chapa, inclusive aqueles que não foram eleitos e fizeram a denúncia. Ou seja, as mulheres que se sentiram enganadas por Renata Abreu e levaram o caso ao Ministério Público também estão sendo processadas. O grupo de WhatsApp que criaram ficou conhecido como “Traídas pela Renata”.

Enquanto as ações contra Renata Abreu correm na Justiça, no Congresso corre a batalha da bancada feminina contra o projeto das cotas. No entendimento de deputadas críticas à proposta, flexibilizar a cota prejudica a luta por maior participação feminina na política e abre caminho para a concentração dos 30% dos recursos partidários nas mãos de poucas. Por exemplo, se uma chapa vai lançar cem candidatos e tem 100 reais para investir em todos, hoje pelo menos trinta devem ser mulheres, que recebem no mínimo 30 reais. Se o texto for aprovado, o partido pode decidir lançar apenas dez mulheres e ficar com vinte candidaturas vagas – essas dez candidatas, porém, continuarão a receber 30 reais. O poder de decidir para quem irão os recursos do partido é de seus dirigentes.

“Significa que uma única mulher pode ficar com todos os 30% [dos recursos], e os homens, 70%”, afirmou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP). “Renata está raciocinando como presidente de partido e não como mulher. O partido tem de ser obrigado a colocar as mulheres na chapa e sofrer sanções por isso. Senão, não funciona”, criticou a deputada Soraya Santos (PL-RJ).

Pela legislação vigente, o partido que descumprir a cota de 30% sofre punições como a suspensão de repasses do fundo partidário ou a devolução de valores ao erário. Há ainda previsão de que o partido aplique no ano seguinte o montante que deveria ter investido no anterior, com a atualização monetária e possível acréscimo de 2,5% do total do fundo partidário recebido.

A discussão em torno do projeto de Renata Abreu tem origem tanto no ceticismo em relação à eficácia da política de cotas como nas novas regras eleitorais vigentes para 2020. Embora o número de deputadas federais no Brasil tenha aumentado 51% de 2014 para 2018, quando a bancada passou de 51 para 77 deputadas, a própria Abreu justificou a primeira versão de sua lei de cotas escrevendo que as cotas não eram a única razão para o aumento da representatividade feminina – depois ela apresentou um novo projeto, reformulado, com texto semelhante. “Não é razoável supor que exista discriminação de gênero que impeça candidaturas femininas a ponto de precisar de medidas extremas como a existente na legislação atual.” Em entrevista à piauí, ela explicou sua posição. “Claro que as cotas são fundamentais, mas eu nunca soube de nenhuma cota que, para favorecer um público, precise punir o outro. Quando uma universidade não preenche a cota de alunos negros, ela tira as vagas dos brancos? Isso não faz sentido.”

Para Abreu, como os partidos não conseguem preencher os 30% com candidatas competitivas, eles muitas vezes “obrigam” algumas mulheres a compor a chapa. “Muitas têm dificuldade de deixar suas vidas em segundo plano para se dedicar à política porque dependem dos maridos ou não têm quem fique com seus filhos.” O que interessa, diz a deputada do Podemos, é manter a obrigação de a legenda gastar no mínimo 30% do fundo com candidaturas de mulheres. “Vai ser mais eficiente, porque poderemos pegar novas mulheres e investir nelas.” Ela disse que a punição a quem não cumprir a cota feminina virá das urnas, não da Justiça. “Não é verdade que não haja punição para os partidos que não cumprirem a cota de mulheres. Manter vazia a vaga feminina é muito ruim para qualquer legenda, porque mesmo um candidato com poucos votos é melhor do que nenhum. Mas parte da bancada feminina só quer brigar”, afirmou Abreu. Segundo a presidente do Podemos, o texto evitará o lançamento de candidaturas laranjas – justamente a acusação que embasa as ações contra ela.

Sobre as acusações contra ela, a deputada respondeu em um segundo momento, por meio de sua assessoria de imprensa. Disse que o projeto de lei não tem nada a ver com a ação movida pelas candidatas do Podemos. Afirmou que as acusações “não tem pertinência”. “Não houve nem jamais haverá promessas para convencimento de candidaturas no partido. Falsas acusações serão levadas à Justiça.” Segundo ela, a distribuição dos recursos na legenda que preside leva em conta avaliação política e “potencial eleitoral analisado pelas executivas do partido, buscando sempre o melhor resultado para cada candidatura e considerando as necessidades individuais”.

Ninguém admite isso às claras, mas para os dirigentes partidários, mudar a política de cotas femininas seria um alívio. Como a partir de 2020 não serão mais aceitas coligações, quanto mais candidatos competitivos uma legenda tiver, maior a chance de garantir um bom quociente eleitoral – e, portanto, a sobrevivência. Muitos presidentes de partido encaram as cotas femininas como um obstáculo a mais para conseguir obter bom desempenho, embora Abreu diga discordar desse diagnóstico. “Candidatos laranja há homens e mulheres. O que interessa não é o sexo, é o voto.” Nas conversas com outras deputadas, porém, ela tenta convencer com um argumento bem concreto: sem precisar compor a chapa com candidatas laranja ou pouco competitivas, sobra mais dinheiro para aquelas que já estão enfronhadas na máquina partidária. Foi contra essa ideia que parte da bancada feminina se insurgiu, no início de agosto.

A versão anterior do projeto de lei, que flexibilizava ainda mais a cota, caminhava a passos largos na Câmara. Foi barrada pela articulação de deputadas contrárias, que somam quase a metade da bancada feminina de 77 integrantes. Abreu apresentou, então, a nova versão, e quer vê-la aprovada até 5 de outubro, a tempo de valer para as eleições municipais de 2020. Em meio à polêmica, Abreu preferiu recuar na quarta-feira (4), dizendo que tentaria chegar a um consenso com a bancada feminina para depois levar a nova versão à CCJ.

A batalha das mulheres ainda terá novos rounds. O grupo que se opunha ao texto anterior também é contra o atual. Entre elas, as deputadas se referem ao projeto como a “lei da maridocracia”. “Quem está a favor são filhas, esposas ou parentes de algum político, que terão financiamento garantido porque já fazem parte de um grupo consolidado”, avaliou Sâmia Bomfim. “Se não for obrigatório ter 30% de mulheres, muitas podem não ter garantia de que serão, de fato, candidatas.”

O futuro da questão está nas mãos de um homem: Rodrigo Maia (DEM-RJ). Caberá ao presidente da Câmara definir como será a tramitação do projeto e sua prioridade na Casa. Às deputadas Dorinha Rezende (DEM-TO) e Soraya Santos (PL-RJ), Maia disse que não tem pressa em votá-lo. Mas ressaltou que, se os líderes dos partidos quiserem pôr em votação, não poderá se opor. À piauí, o deputado disse que só vai mandar o projeto ao plenário se houver acordo na bancada feminina. A decisão fará toda a diferença, já que o resultado do debate poderá interferir nas eleições de 2020.

Por Thais Bolenky e Malu Gaspar
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