(CartaCapital, 04/08/2016) Já não cabe mais acatar que profissionais sérias e altamente qualificadas como atletas sejam abreviadas à condição de “gostosa”
Vou começar esse texto com uma confissão: não pratico esportes. Ainda assim, vou falar sobre as Olimpíadas. Declaro não ser atlética antes de oferecer um parecer feminista sobre os Jogos por saber que a vida das esportistas – amadoras ou profissionais – é muito mais diretamente, dramaticamente e negativamente afetada pelas práticas misóginas do universo dos recordes e medalhas do que a vida de quem, como eu, acompanha a mídia esportiva apenas em épocas de megaeventos.
O que viso oferecer aqui é um olhar feminista de espectadora, tanto dos Jogos quanto de toda a cobertura jornalística que segue. Um olhar que ainda está por ver, mas que antecipa o que vai acontecer na transmissão da #Rio2016: a objetificação das atletas por um jornalismo tarado que abusa de seus corpos – ainda que simbolicamente.
As Olimpíadas mal começaram, e algumas notícias já foram problematizadas pelaintelligentsia feminista online. Notícias em que imagens dos corpos das atletas são compostas de forma a sexualizá-las. Enaltecer atletas Olímpicas por sua boa forma, além de redundante – elas são, afinal, a elite do desporto mundial – é pernicioso.
Isso porque as matérias e imagens sobre elas raramente louvam a potência de seus corpos ou as habilidades que as tornam campeãs, como disciplina e obstinação. Em contrapartida, nunca falta detalhamento visual a respeito de coisas como o formato dos seus glúteos.
A boa forma das atletas, que serve outro propósito, pelas mãos do jornalismo tarado vira mais um dispositivo para colocar as mulheres no lugar onde o patriarcado nos quer: o de complemento decorativo e objeto de desejo, e não de agentes autônomas bem sucedidas em função dos próprios esforços.
Antes de começar a escrever este texto, eu estava com o coração dividido entre questionar o aparato Olímpico e celebrar as atletas. Foi ao começar a escrevê-lo que me dei conta: celebrar as conquistas e superações das atletas mulheres de forma respeitosa, desviando da cilada que transforma estas profissionais em musas para consumo masculino, équestionar o aparato Olímpico – ou ao menos as estruturas machistas que ainda o sustentam.
Não é difícil celebrar atletas por suas competências, e não por sua aparência. Este já é o tratamento dado a atletas homens. Que precisemos escrever, ou fazer campanhas, ou produzir material educativo para que a mídia não trate esportistas como objetos sexuais é evidência do machismo latente que permeia todas as instituições.
O machismo é um dos principais motivos pelos quais as mulheres se afastam dos esportes, e, felizmente, existem diversos projetos feministas dedicados a questionar e desafiar este paradigma.
O Olga Esporte Clube, por exemplo, visa transformar a relação entre mulheres e esporte, partindo do pressuposto que o machismo rouba delas o direito ao prazer, à socialização e ao crescimento pessoal, que são a essência da prática esportiva.
É machismo o que transforma o esporte e a inclinação atlética das mulheres em instrumentos de reforço do culto ao corpo, fomentando neuroses como controle de peso e fixação na perfeição estética.
O Guerreiras Project há anos utiliza o futebol como ferramenta para revelar, analisar e combater preconceitos de gênero. Essa iniciativa (da qual aconteço de ser co-fundadora, junto com a ex-jogadora estadunidense Caitlin Fisher e a campeã dos Jogos Pan-Americanos de 2007, vice-campeã da Copa do Mundo Feminina de 2007, e medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 2004, Aline Pellegrino) cria e estimula diálogos visando ampliar a conscientização e reflexão crítica necessárias para a remoção dos obstáculos machistas que atravessam o caminho das atletas.
As dibradoras – que também atuam na conscientização a respeito do machismo que perpassa a prática do futebol de mulheres – cansadas de ver a mídia tratando como musas as profissionais que trabalham duro para ser campeãs, com muito treinamento, suor e lágrimas, lançaram a campanha #MaisQueMusas, que roga por uma cobertura jornalística madura das atletas em detrimento da transmissão adolescente do jornalismo tarado, que se interessa apenas por seus corpos.
Já a Revista AzMina criou o manual didático “Como não ser machista em contextos esportivos”. Nele, dicas práticas para jornalistas, esportistas, treinadores e espectadores lembrarem que as mulheres não existem, tampouco se exercitam, para seduzir ou para serem musas, mas sim porque mulheres são seres humanos que gostam de esportes e os praticam, e não deveriam ser desrespeitadas, violentadas ou objetificadas por causa disso.
Alguns veículos da mídia nacional já tomaram providências para que a misoginia seja varrida da cobertura das Olimpíadas. O UOL Esporte, por exemplo, buscou ajuda de duas ONGs feministas – a já mencionada AzMina, e a Think Olga – para mapear as barreiras que mulheres esportistas encontram por serem mulheres.
Com cinco vídeos e uma série de reportagens que antecedem as Olimpíadas, a campanha encoraja todas a engrossar o caldo de denúncias aos machismos que permeiam a vida das esportistas usando a hashtag #QueroTreinarEmPaz.
O simbolismo de oferecer às mulheres atletas o tratamento de musas, gatas e afins reforça a mensagem que vem sendo enviada para mulheres há anos: sua habilidade atlética é de segunda classe, o que importa é sua aparência. Esta é a mesma mensagem enviada para meninas e mulheres, em todos os lugares, a respeito de quase tudo, todos os dias: “seu papel é decorativo”.
O jornalismo tarado que trata atletas como meros objetos sexuais é bastante responsável pelo grande dilema das profissionais do esporte: modalidades femininas recebem menos cobertura porque têm menos verba, ou recebem menos verba por terem menos cobertura?
É impossível responder a esta pergunta sem antes compreender que, para conquistarmos equidade material, é preciso equidade subjetiva, e para isso é fundamental que respeitemos as atletas primordialmente por seu trabalho, e não por suas coxas e peitos.
Jornalistas – assim como torcedores, executivos, familiares e treinadores – não deveriam permanecer confortáveis com o fato de as mulheres, além de receberem menos (dinheiro, apoio, visibilidade…), quando recebem é em função de como se parecem. Esta desigualdade é tão interiorizada que, quando as atletas a apontam, elas tendem a ser desacreditadas, ou mesmo silenciadas.
Que a #Rio2016 sirva também como motivo para que nós, espectadoras, sigamos falando e desafiando normas e padrões opressivos que são socialmente aceitos. Já não cabe mais acatar que profissionais sérias e altamente qualificadas sejam abreviadas à condição de “gostosa”.
#TemMulherNaJogada, então que a audiência continue de olho no jornalismo tarado, usando hashtags de denúncia para interagir com a mídia misógina. #JogaPraElas para que as usemos todas, e muito, até que esse jornalismo pueril crie vergonha e passe a agir como gente grande, bem resolvida – e nada machista.
Acesse no site de origem: #Rio2016 e o jornalismo tarado, por Joanna Burigo (CartaCapital, 04/08/2016)