Saúde da mulher em privação de liberdade, por Ir. Petra Silvia Pfaller, Helena Mayra Mattos de Andrade e Heloísa Moriyama de Oliveira Santos

16 de dezembro, 2025 Diplomatique Por Ir. Petra Silvia Pfaller, Helena Mayra Mattos de Andrade e Heloísa Moriyama de Oliveira Santos

Negar o acesso à saúde ginecológica não é apenas uma questão de negligência. É uma forma de violência institucional que aprofunda desigualdades, compromete a dignidade das mulheres presas e fere o princípio constitucional da universalidade do SUS. Garantir esse cuidado é urgente, necessário e inadiável

A prisão é uma instituição insalubre e violenta que supostamente busca, com anos de privação do convívio em sociedade da pessoa presa, restabelecer sua possibilidade de convívio em sociedade. Para além dessa contradição, na própria ideia de prisão, que não é corroborada por nenhum dado que comprove essa função preventiva da pena, as condições das unidades prisionais brasileiras são tão precárias que é impossível um ser humano se recuperar nesse ambiente, onde ele não é nem mesmo tratado como humano.

As condições precárias vão desde a infraestrutura das unidades prisionais – marcada pela falta de espaço, colchões e acesso ao sol – até a ausência de condições mínimas de sobrevivência, como alimentação adequada e atendimento em saúde. No que diz respeito especificamente à saúde, um dos grupos mais afetados pela negligência estatal é a população carcerária feminina. As necessidades específicas de mulheres e pessoas LGBT+ são raramente contempladas, em um contexto mais amplo de descaso com a saúde da população prisional como um todo.

Além disso, é importante considerar que a maioria das mulheres presas no Brasil são negras e provém de contextos de vulnerabilidade social extrema. Esse dado revela que o encarceramento feminino é atravessado por marcadores de raça, classe e gênero, potencializando as formas de violência e negligência institucional enfrentadas por essas mulheres. O sistema penal não só falha em atender suas necessidades, como também atua como instrumento de reprodução de desigualdades históricas.

No Brasil, milhares de mulheres presas vivem sob condições que violam seus direitos mais básicos, incluindo o direito à saúde. Soma-se a isso a precariedade das condições básicas de higiene, com falta de água potável e restrições severas de acesso à água para o banho, para a higienização íntima e para a lavagem de roupas. Essa escassez agrava ainda mais os riscos à saúde da mulher, especialmente no que diz respeito a infecções, doenças dermatológicas e sofrimento físico e psicológico.

Além da negligência no atendimento médico, em algumas unidades, há a carência de absorventes, papel higiênico e até mesmo água encanada, tornando a vida das mulheres

presas, durante o período menstrual, e de homens trans presos muito insalubres. Isso dificulta, em muito, a manutenção de um corpo saudável e favorece a proliferação de doenças.

Dados mais atualizados confirmam que muitos dos problemas apontados não são exceções nem situações isoladas, mas fazem parte de um padrão nacional de omissão e desrespeito aos direitos básicos da mulher presa.

Atendimento médico ginecológico

A saúde ginecológica é uma dimensão fundamental da saúde integral da mulher, envolvendo ações preventivas, diagnósticos precoces e tratamentos contínuos. No entanto, esse cuidado essencial tem sido sistematicamente negligenciado no sistema prisional brasileiro. Um levantamento da República.org (2024), repercutido pela AzMina, revela um dado alarmante: 98,34% das unidades prisionais brasileiras não contam com ginecologistas. Em números absolutos, das 127 unidades exclusivamente femininas, 113 não oferecem esse atendimento especializado; nas unidades mistas, 86 de 89 também carecem desse profissional. Apesar da gravidade dos dados levantados, ainda há uma grande escassez de informações sistematizadas e desagregadas sobre a saúde da mulher no sistema prisional. A ausência de dados com recortes de raça, identidade de gênero, faixa etária e condições clínicas impede uma compreensão aprofundada do problema e dificulta a formulação de políticas públicas direcionadas. A invisibilização estatística é, portanto, uma forma de violência institucional que contribui para a manutenção do descaso.

Nas unidades prisionais femininas, observa-se uma carência significativa de atendimento ginecológico, essencial para a manutenção da saúde das pessoas com útero. Essa ausência compromete diretamente o acesso a exames de rotina e acompanhamento médico, como o Papanicolau, fundamental para o rastreamento do câncer de colo do útero, e a mamografia, voltada à detecção precoce do câncer de mama. Além disso, condições como infecções ginecológicas e urinárias, distúrbios hormonais, miomas, endometriose, sangramentos anormais, sintomas da menopausa e cólicas incapacitantes muitas vezes não são diagnosticadas ou tratadas adequadamente. Sem a devida intervenção, essas doenças podem evoluir silenciosamente para quadros graves e até fatais, tornando ainda mais urgente a garantia de um atendimento ginecológico regular e qualificado nesse contexto.

Negar o acesso à saúde ginecológica não é apenas uma questão de negligência. É uma forma de violência institucional que aprofunda desigualdades, compromete a dignidade das mulheres presas e fere o princípio constitucional da universalidade do SUS. Garantir esse cuidado é urgente, necessário e inadiável.

Mulheres/identidades femininas LGBT+

A assistência à saúde de mulheres trans e travestis no sistema prisional mostra-se especialmente precária, uma vez que a hormonização – parte essencial da construção da identidade de gênero e do bem-estar psicológico e físico de muitas delas –, embora garantida pela Resolução nº 348 do CNJ nas unidades prisionais, frequentemente não é assegurada na prática. Como consequência, muitas enfrentam disforia corporal decorrente da interrupção ou impossibilidade do tratamento hormonal, além de estarem mais expostas à violência, que tende a se intensificar quanto menor for sua “passabilidade” como mulheres cis e quanto mais ambígua for a leitura social de seus corpos.

Outras mulheres e pessoas LGBT+ também sofrem com a negligência em relação à saúde sexual, diante da inexistência de preservativos adequados para determinadas práticas sexuais não cis-heteronormativas, da carência de atendimento médico nas unidades – que dificulta significativamente a realização de testes para ISTs, as quais afetam pessoas independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero –, e do preconceito institucional, que muitas vezes impede o direito à visita íntima de pessoas LGBT+ e de mulheres, em desacordo com o preceito constitucional da igualdade e com a Resolução nº 348 do CNJ.

Gestantes, lactantes e crianças no cárcere: um quadro de violência obstétrica e legal

No primeiro semestre de 2024, o Relatório de Informações Penais (Relipen), do Ministério da Justiça, identificou que o Brasil tinha cerca de 28.770 mulheres presas, dentre as quais 212 gestantes e 117 lactantes. Além disso, 119 filhos/as de mulheres presas vivem dentro das unidades prisionais com suas mães. Esses números revelam que a experiência da maternidade e da gestação dentro do cárcere é uma realidade com consequências concretas, não apenas teóricas.

A presença de gestantes, lactantes e crianças nas prisões brasileiras escancara uma realidade de negligência institucional. Segundo o Relatório Nacional de Informações Penais de 2024, há pelo menos 212 gestantes, 117 lactantes e 119 crianças vivendo com suas mães em unidades prisionais. Esses números revelam um desafio urgente para a administração pública, que tem o dever de oferecer condições específicas e humanizadas para esse grupo altamente vulnerável.

O cuidado com mulheres grávidas privadas de liberdade deveria incluir atendimento obstétrico qualificado e acompanhamento pré-natal regular, garantindo exames laboratoriais, atenção em caso de intercorrências, ambiente adequado para o parto e o puerpério, além de estrutura mínima para amamentação e nutrição infantil. No entanto, o que se observa na prática é um cenário marcado pela precariedade estrutural, escassez de profissionais da saúde e ausência de protocolos claros e humanizados de cuidado obstétrico.

Relatos frequentes indicam a ocorrência de violência obstétrica no cárcere, com partos realizados sem o devido uso de anestesia ou analgesia, em condições insalubres, sem a presença de acompanhante e, por vezes, com o uso de algemas. Tais práticas desrespeitam a legislação vigente e revelam a negligência do Estado com a saúde e a dignidade dessas mulheres. A gestação em privação de liberdade, longe de receber atenção especial, frequentemente resulta em novos traumas físicos e emocionais.

Apesar do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de que o sistema prisional brasileiro não oferece condições mínimas para a saúde de mulheres grávidas ou com filhos, a decisão se restringiu a prever a substituição da prisão provisória por prisão domiciliar. Com isso, mulheres já condenadas continuam cumprindo pena em unidades prisionais mesmo diante da evidente inadequação das condições oferecidas.

Embora várias unidades femininas possuírem berçários e “espaços infantis”, é crucial enfatizar que tais espaços não são adequados para a educação de uma criança, sendo claramente integrados ao ambiente prisional. Assim, a pena vai além da mãe. É importante salientar que o ato de separar a criança da mãe para ser criada fora das prisões, já realizado após uma certa idade, é igualmente doloroso, tanto para a mãe quanto para a criança. Nesse contexto, a penalidade vai além da mãe, devido aos prejuízos causados pela separação forçada.

Mais do que uma falha estrutural, trata-se de uma violação explícita de direitos. A omissão do Estado nesse cuidado básico infringe o artigo 196 da Constituição Federal, que afirma: “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. No caso da população privada de liberdade, esse dever é ainda mais evidente, já que o Estado é responsável direto por sua custódia, integridade física e bem-estar.

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