Elas têm o poder

23 de julho, 2014

(Correio Braziliense, 23/07/2014) As escritoras Ana Maria Gonçalves (BA) e Paulina Chiziane (Moçambique) participam hoje, às 16h, da conferência de abertura Diálogos Afro-Atlânticos. Autora do emblemático Um defeito de cor, Ana Maria abordará a questão da construção da identidade da mulher negra e os estereótipos que elas enfrentam. “Muitas vezes, as negras não são consideradas boas mulheres para casar, e, sim, para transar. Elas têm direito ao amor e a serem amadas, tanto por homens brancos quanto por homens negros”, diz. “Outro preconceito que elas enfrentam é a imagem da mulher imbatível. Todas têm o direito de chorar e de ficar tristes. A desconstrução dessas representações é uma questão importante para deixar a vida delas mais leve e plena, além da melhora da autoestima individual. Porém, é importante lembrar: esses estereótipos são um problema de toda a sociedade”, completa Ana Maria.

Autora de Ventos do apocalipse (1995) e O sétimo juramento (1999), Paulina Chiziane é a primeira mulher moçambicana a escrever um romance (Balada de amor ao vento foi lançado em 1990). Sobre o título, Paulina adverte: “Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance, mas eu afirmo que sou contadora de estórias, e não romancista. Escrevo livros com muitas histórias, histórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte”, destaca a escritora.

A observação de Paulina está na orelha da edição portuguesa de seu mais recente livro, Niketche, uma história de poligamia (2004), que mostra a trajetória de uma mulher moçambicana ao descobrir que o marido é polígamo. O susto e a surpresa ao saber que existem outras esposas e filhos é seguido por uma decisão surpreendente: a protagonista decide ir atrás das outras famílias e parte para uma incursão pelo desconhecido e pelas diferenças culturais. Em Brasília, Paulina abordará a identidade africana e as religiões mundiais.

Outros temas

Atenta aos casos de racismo na literatura, a mineira, radicada em Salvador, Ana Maria Gonçalves já se manifestou sobre em episódios em que vários escritores preferiram a omissão. Sobre Caçadas de Pedrinho e Monteiro Lobato, Ana Maria relembrou as origens eugenistas e racistas do pai de Emília. No carnaval de 2011, a escritora publicou a Carta aberta ao Ziraldo, em que critica o cartunista pelo desenho na camisetas do bloco carnavalesco carioca Que merda é essa?, que estampava Monteiro Lobato abraçado a uma mulher negra de biquíni. “Fiquei curiosa para saber se você conhece a opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos (.)”, escreveu Ana Maria.

Sobre a Copa do Mundo, ela frisa que o evento esportivo foi um retrato da sociedade brasileira. A ausência de negros nas arquibancadas dos estádios e os episódios de preconceito dentro de campo revelam uma desarmonia. “A Fifa cria a campanha de uma Copa sem racismo, mas, por ter mecanismos artificiais, ela não funciona. É uma ação criada de cima para baixo e quem deveria estar envolvida não está. O mesmo acontece com o ensino da história da África nas escolas”, analisa a mineira.

Sobre a polêmica campanha Somos todos macacos, liderada pelo jogador Neymar, Ana Maria destaca: “Em vez de ele procurar um órgão ou uma entidade que realmente desenvolva ações contra o racismo, ele fez uma jogada de marketing para passar uma boa imagem pré-Copa. Isso não vai acabar com o racismo no futebol”.

Griôs da diáspora negra

Depois de debater o espaço das mulheres negras nos meios de comunicação e no mercado de trabalho, entre outros temas, o Latinidades coloca em pauta os Griôs da diáspora negra. Todas as atividades do evento vão apresentar e propor políticas públicas para a valorização dos griôs e para a preservação da tradição oral. “Os griôs (o termo griot) vêm de regiões do continente africano que tiveram colonização francesa, porém, mais do que a raiz etimológica, o termo fala de práticas culturais. Os griôs são os sábios que guardam a riqueza cultural de um povo e passam os saberes de geração para geração”, explica Ana Flávia Magalhães Pinto, coordenadora das atividades formativas do festival e doutoranda em história pela Universidade Estadual de Campinas.

Para o festival, Ana Flávia destaca as diferentes frentes de atuação dos griôs e a presença feminina nesses espaços. “É uma figura, frequentemente, associada ao masculino. Além de recuperar a importância desse sujeito cultural, queremos mostrar, também, a mulher negra como detentora do legado cultural. Vamos expor a literatura, o teatro e o cinema, entre outras áreas como fontes do saber”, acrescenta Ana Flávia.

A escritora Ana Maria Gonçalves destaca a relevância da tradição oral. “Sempre que me perguntavam sobre o meu lugar na literatura, eu respondia: “Antes de tudo, sou uma contadora de histórias”. Tivemos uma sobrevalorização da cultura da literatura escrita, mas a oral também é muito importante. Narrar a nossa vida e nosso dia a dia é oralidade, e preservar essa tradição é fundamental. É um contraponto ao que está acontecendo hoje com as redes sociais. As pessoas são repetitivas nas relações virtuais. Elas estão perdendo a capacidade de se comunicar”, analisa a autora do romance Ao lado e à margem do que sentes por mim.

“A Fifa cria a campanha de uma Copa sem racismo, mas, por ter mecanismos artificiais, ela não funciona. É uma ação criada de cima para baixo e quem deveria estar envolvida não está”. Ana Maria Gonçalves, escritora.

Memória

2013 – Arte e cultura negra – Memória Afrodescendente e políticas públicas foi o tema que movimentou o festival e trouxe a articulação em torno de propostas e editais específicos para a cultura negra. A participação internacional também se intensificou, com a presença de representantes de Cuba, Colômbia, Nigéria, Zimbabwe, África do Sul, Estados Unidos, Congo, Holanda, Nicarágua e Inglaterra.

2012 – O festival reuniu vários jovens para discutir a temática Juventude Negra e os primeiros passos do programa Juventude Viva, que articula políticas sociais no campo da educação e do trabalho. O evento teve uma parceria com a maior feira de cultura negra da América Latina, a feira Preta.

2011 – Sob o tema mulheres negras no mercado de trabalho, o projeto puxou o debate em torno da PEC das trabalhadoras domésticas, que foi importante para dar visibilidade à luta e garantir às conquistas do projeto.

2010 – Desta vez o tema foi Censo e políticas públicas para mulheres negras e as discussões deram origem a uma publicação-referência, em parceria com a Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados de gênero e raça.

2009 – O festival discute a mulher negra nos meios de comunicação com uma tarde de debates e uma noite de shows.

2008 – Nasce o festival com dois debates e algumas apresentações culturais para marcar o Dia da mulher Afro-Latino Americana e Caribenha.

Acesse o PDF: Elas têm o poder (Correio Braziliense, 23/07/2014)

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