Como os movimentos feministas estão sobrevivendo à Argentina de Milei?, por Soledad Dominguez

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Foto: Mídia Ninja

11 de fevereiro, 2025 AzMina Por Soledad Dominguez

A resposta está nas ações colaborativas entre movimentos de direitos humanos para conter grandes retrocessos em tempos de destruição

A Argentina feminista, a Argentina trans, a Argentina travesti e não binária estão em pé, mais ativas e atives do que nunca. Entrevistei em Buenos Aires as advogadas do ELA – organização que promove os direitos para a igualdade de gênero – e Mochacelis – associação pelos direitos das pessoas TTNB (travestis, trans e não binárias). Após um ano de governo Milei, presidente argentino do partido La Libertad Avanza da extrema direita, é importante registrar e acompanhar as ações que os movimentos sociais desenvolvem para enfrentar o desmantelamento de políticas contra a violência de gênero, que tiveram início em dezembro de 2023.

Ainda restam mais três anos desse governo Milei, com seu modelo de gestão obcecado com a redução do déficit fiscal. Além do aumento da precarização do acesso à saúde, educação, bem-estar das pessoas idosas e da situação dos direitos humanos de modo geral.

Ângela Davis dizia: “Eu não aceito as coisas que não posso mudar, eu mudo as coisas que não posso aceitar”. Essa frase ecoa em todas as reuniões e manifestações públicas de grupos feministas e movimentos TTNB da Argentina. Esse processo de luta não é solitário, embora esteja permeado e estigmatizado por discursos de ódio. A estratégia dos movimentos feministas argentinos foi de ampliar as parcerias com outras organizações de direitos humanos e trabalhar com uma agenda mais ampla.

Para monitorar a implementação efetiva dos direitos sexuais e reprodutivos, a equipe ELA formou um consórcio em estreita colaboração com a Anistia Internacional. “Estamos ativas, por exemplo, na busca de acesso a informações públicas sobre a distribuição de misoprostol por parte da Administração do Governo Central para as províncias argentinas“, explicou Agustina Rossi, da área de políticas do ELA.

Acesso a dados e ao aborto têm barreiras

Acessar dados públicos e fontes é uma tarefa que apresenta travas e complicações na Argentina. Desde outubro de 2024, existem barreiras ao acesso à informação. Um decreto presidencial de Milei torna muito difícil os levantamentos e monitoramentos de ações públicas.

Desde o início da administração de Milei a compra de material essencial para o acesso ao aborto seguro ficou paralisada. Isso aumenta cada vez mais as barreiras a este direito nas diferentes jurisdições do país. Com base nas informações fornecidas pelo Ministério da Saúde para a Anistia Internacional Argentina e o ELA, em 2024, nenhum suprimento foi entregue às províncias argentinas, devido a um atraso com a licitação pública.

“Hoje, em janeiro de 2025, o processo de licitação para a compra de misoprostol e mifepristona continua sofrendo atrasos excessivos e se desconhecem as causas da demora, assim como as informações sobre em que mês os insumos estarão disponíveis”, informou a área jurídica do ELA.

O feminismo é o inimigo íntimo de Milei. O primeiro sinal do seu mandato – em dezembro de 2023 – foi muito simbólico. Ele eliminou o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade, que foi recategorizado como Subsecretaria de Proteção contra a Violência de Gênero.. As associações ativistas e feministas redobraram os esforços para cobrar as informações oficiais sobre as atribuições dadas para as novas entidades e como ficaram distribuídos os programas e responsabilidades anteriormente gerenciados pelo Ministério da Mulher.

Para Agustina Rossi, do ELA, o que ficou muito claro foi a estratégia de fragmentação dos programas de apoio existentes. Isso colocou vítimas de violência de gênero numa situação de absoluta incerteza, falta de proteção e resposta, sem uma comunicação clara de onde solicitar ajuda.

Políticas contra violência de gênero enfraquecidas

O relatório ¿Libradas a su suerte?, elaborado por ELA e ACIJ (Associação Civil pela Igualdade e Justiça), analisou o estado das políticas públicas contra a violência de gênero durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei. “Os resultados mostram uma alteração significativa, um desmantelamento dessas políticas”, afirmou Agustina.

Milei e o Ministério da Justiça atribuíram os “cortes” a uma necessidade de eficiência do Estado. Mas sem dizer que não iam cumprir suas obrigações como vinha acontecendo nos anos anteriores. No Fórum Econômico de Davos, ele reafirmou a ideia de que “o giro progressista” dado pelo mundo nos últimos anos prejudica a economia global.

Alinhado com o brutalismo comunicativo de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, Milei afirma: “A agenda do feminismo radical tornou-se mais uma intervenção do Estado para travar o processo econômico”. Sendo assim, as medidas imediatas do presidente argentino foram para reduzir as políticas para as mulheres e gênero.

Órgão nacional extinto na Argentina

O antigo Ministério, reduzido a Subsecretaria de Proteção contra a Violência de Gênero no governo Milei, foi definitivamente extinta agora. Pela primeira vez desde os anos 80, não há um órgão nacional para promoção e proteção dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAPN+. Em 2023, segundo o Observatório de Feminicídios da Defensoria Geral da Nação, houve 322 feminicídios no país. O número representa cerca de 30% a mais do que no ano anterior, quando foram registrados 242. Na última década, foram registradas pelo menos 2.446 vítimas diretas de feminicídio.

Nesse início de 2025, o governo de Milei confirmou o projeto de reforma do conceito de feminicídio no Código Penal Argentino. Disposto a se tornar um aliado cada vez mais próximo de Donald Trump contra a diversidade de gênero, o presidente da ultradireita argentino tem uma proposta de reverter as leis que ampliaram os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAPN+ na Argentina.

Mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ em maior risco

A fragilização e a desagregação dos 22 programas do Estado argentino contra as violências por motivos de gênero estão impactando a vida de mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. A pesquisa mencionada acima, ¿Libradas a su suerte?, explica como o programa chamado Acompañar ficou paralisado. A iniciativa prestava apoio econômico às mulheres e pessoas vítimas de violência de gênero, e permitia cobrir necessidades urgentes. No primeiro trimestre de 2024, apenas 400 mulheres receberam o benefício, em comparação com as 34.000 no mesmo período de 2023.

“A falta de acesso real desencoraja as vítimas e as expõe ainda mais, perpetuando a violência num sistema que promete uma ajuda que nunca chega”, comenta Agustina Rossi. Atualmente, para acessar o programa, existe uma nova disposição: as mulheres têm de denunciar a violência nas delegacias de polícia. “Isso as coloca em maior risco”, afirma Manuela Kotsias Fuster, advogada na equipe do ELA.

Sociedade civil que salva

As pessoas LGBTQIAPN+ na Argentina também se encontram em desamparo por parte do Estado. E são as organizações da sociedade civil que de alguma maneira canalizam os pedidos e solicitações de pessoas em situação de risco por causa de violências.

Na associação Mochacelis, são nove programas de apoio a pessoas dessa comunidade. Um deles, o EmpleoTrans, tem convênios com empresas e grandes comércios para a inserção profissional de TTNB. Virginia Silveira, presidenta da Mochacelis, contabiliza que a organização recebe em média 2.000 pessoas por mês por motivos de violência e situação de rua, tanto de travestis como de pessoas não binárias.

“Fazemos convênios com o Governo da Cidade de Buenos Aires, não com o Federal, para receberem essas pessoas em abrigos noturnos. Mas há uma lacuna muito grave nos cuidados de saúde mental da nossa população“, destacou Virgínia, acrescentando a ocorrência de cortes orçamentais e de profissionais nos hospitais públicos argentinos. Foi o caso da Unidade Nacional Laura Bonaparte, especializada em saúde mental, que despediu 183 profissionais. “É o único centro de saúde pública especializado no acolhimento de pessoas que não têm cobertura médica. As nossas companheiras costumavam ir lá e agora ficam sem atendimento.”

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