(O Globo, 29/05/2016) Após o estupro, ela foi reclamar com a autoridade real do bairro — o chefe do tráfico
Agora é torcer para que o estupro coletivo da garota de 16 anos por uma matilha de homens de uma favela do Rio não venha a ser lembrado, apenas, por sua selvageria. Se nem esse crime servir de ponto de inflexão, caberá ao Brasil olhar-se no espelho e constatar, com horror, a sua cumplicidade por omissão.
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Em dezembro de 2012, a Índia passou por trauma semelhante, seguido por um surto de indignação nacional jamais visto. Em Nova Délhi, uma jovem fisioterapeuta de 23 anos saíra de uma sessão de cinema com o namorado e embarcara num ônibus para voltar para casa. O veículo revelou-se uma ratoeira, com cinco homens e o motorista à espera de uma vitima.
A jovem foi estuprada e torturada por todos, brutalizada com um cano enferrujado a ponto de ter os intestinos destruídos e depois jogada fora com o veículo em movimento. Só que ela não morreu de imediato, como imaginavam seus atacantes. Produziu, primeiro, um milagre nacional.
Apesar de ser a capital do país, Nova Délhi é notória por ter a mais alta incidência e tolerância com crimes de estupro. Ainda assim, uma massa compacta de seus 300 mil habitantes decidiu pegar a arma que tinha — foi para a rua e de lá não saiu até sacudir o imobilismo do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Foi uma sucessão de protestos de rua jamais vistos, nos quais a centelha de mudança acabou sendo o inesperado número de homens que marchavam lado a lado das indianas.
A jovem vítima acabou morrendo duas semanas depois, em consequência dos ferimentos, num hospital de Cingapura. Seu nome não chegou a ser conhecido porque a legislação local proíbe a divulgação da identidade de vítimas de estupros. Cremada como Nirbhaya (A Destemida), ela assim passou a ser designada.
Mas jamais ficou sem rosto. Bastava a qualquer indiana olhar-se no espelho para ver-se retratada como vítima em potencial de uma sociedade que incorporara o estupro no seu tecido social, assim como a sociedade brasileira até anteontem aceitava a corrupção como parte do seu viver.
Patriarcal e misógina, a Índia tinha em 2013, segundo dados da Associação para Reformas Democráticas, mais de 300 deputados estaduais e 27 deputados federais acusados de estupro. Pois esse mesmo estamento viu-se forçado a ceder algum terreno diante da constatação de que protestos, cobranças e denúncias não cessariam. Pior, poderiam acabar desembocando em votos contra.
De todos os cantos do país, brotaram sugestões para a comissão parlamentar vigente — ao todo, foram perto de 80 mil. Um painel governamental chegou a considerar a introdução de alguma forma de castração química para os culpados. Ao final, a medida que mais alento trouxe para as vítimas foi a criação imediata de tribunais especiais para o julgamento acelerado de casos de estupro. Estes costumavam se arrastar por anos, senão décadas — isso, quando não eram arquivados a meio caminho.
Graças a isso, os seis estupradores da jovem fisioterapeuta foram presos, julgados e condenados em menos de um ano: pena de morte na forca (com direito a recurso) para os cinco adultos, três anos na cadeia para o adolescente de 17 anos.
Na data do terceiro aniversário da morte de Nirbhaya, sua mãe, de origem rural e instrução mínima, prestou a homenagem mais amorosa e comovente à filha. “Quero dizer para o mundo inteiro que o nome da minha filha era Jyoti Singh. Não é ela quem precisa se esconder”, anunciou. “Quem deve ter vergonha do nome são os culpados. De hoje em diante, peço a todos que se lembrem dela como Jyoti Singh”, repetiu, num fiapo de voz.
Nirbhaya passou a ser apenas, entre muitas outras coisas úteis, um aplicativo gratuito que envia um sinal de emergência a um grupo social informando-o em que local da cidade a usuária corre perigo.
Na Índia, como no Brasil, a ascensão de mulheres às mais altas esferas do poder em nada contribuiu para diminuir a cultura do estupro. A primeira-ministra Indira Gandhi manteve pulso forte sobre a nação por 15 anos, sua nora Sonia é a atual presidente do Partido do Congresso Nacional, e várias mulheres encabeçam empresas multibilionárias no país. Mesmo assim, avançaram pouco as políticas de gênero voltadas para as zonas rurais e as franjas abandonadas dos grandes centros urbanos.
E são essas franjas que escondem, tanto na Índia quanto no Brasil, o que ninguém quer ver nem mostrar, esse invisível aglomerado social que mete medo quando ele revela a crueza do seu dia a dia.
A menina carioca, que mora na Taquara, Zona Oeste do Rio, foi mãe aos 13 anos. O pai de seu filho de 3 anos já morreu. Após o estupro, ela foi reclamar com a autoridade real do bairro — o chefe do tráfico — seu bem maior, o celular que lhe fora roubado durante a barbárie. À autoridade oficial — a polícia — ela foi prestar depoimento para o andamento das investigações e prisão dos culpados.
Os próximos dias mostrarão quem a atende primeiro. Também não é de se excluir que o chefe do tráfico faça os dois serviços e suma com os estupradores para se livrar do incômodo gerado pela notoriedade do caso.
Essa adolescente que hoje todos querem acarinhar tem colo: ela tem mãe presente, avó atuante e pai vivo, embora se recuperando de dois AVCs. Ou seja, na crueza do entorno onde vive, pode ser considerada exceção. Exceção sobretudo por ter sobrevivido ao estupro coletivo — as estatísticas mundiais indicam que grupos costumam matar suas vítimas após o ato. E também por ter tido acesso ao coquetel de medicamentos contra doenças sexualmente transmissíveis. E as 11 brasileiras que também foram estupradas só no Rio no mesmo dia que a menina da Taquara foi enganada, dopada, violentada múltiplas vezes e exposta com escárnio na internet? E as tantas que não podem falar e sequer podem se reconhecer numa estatística?
O estupro é um tipo de violência que não faz distinção de raça, classe, religião ou nacionalidade, apenas de gênero. A Índia está longe de ter mudado sua cultura, continua com índices horrendos. Mas começou a se mexer.
O Brasil vai encarar?
Dorrit Harazim é jornalista
Acesse em pdf: Estupro: O Brasil vai encarar?, por Dorrit Harazim (O Globo, 29/05/2016)