Só neste ano, 24 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado
Desde a entrada em vigor da Lei do Feminicídio, há dez anos, a Bahia somou 810 assassinatos de mulheres motivados por ódio. A legislação, que passou a valer em março de 2015, estabeleceu esse tipo de crime como uma circunstância qualificadora do homicídio. Em 2023, a norma passou por uma mudança importante ao reconhecer o feminicídio como crime com pena própria. Ainda assim, a violência persiste: só neste ano, ao menos 24 mulheres já foram mortas por motivação de gênero, o que indica, mais uma vez, que a lei não é suficiente para resguardá-las.
Os números dos feminicídios – disponibilizados no Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), pasta vinculada ao Ministério de Justiça e Segurança Pública – não representam a totalidade do problema. Isso porque durante dois anos houve subnotificações de casos, pois, os dados só começaram a ser computados a partir de 2017.
Para Irna Verena Silva Pereira, advogada especialista em Direito Civil, a subnotificação de casos reflete tanto a falta de preparo do Estado para aplicar corretamente a lei quanto a ausência de políticas de capacitação e de coleta de dados com recorte de gênero. “Além disso, muitas mulheres deixam de denunciar porque ainda têm receio de serem desacreditadas e revitimizadas dentro desses espaços em que deveriam se sentir acolhidas. Isso é reflexo direto do despreparo institucional, e a consequência imediata é a subnotificação”, pontua a advogada.
A criação da Lei do Feminicídio marcou um ponto de inflexão: quando entrou em vigor, o Brasil ocupava o 5º lugar mundial em assassinatos de mulheres, segundo o Mapa da Violência. A principal mudança se deu no endurecimento das penas. “Por muitos anos, matar uma mulher, especialmente no contexto doméstico, era tratado com brandura pelo sistema de justiça”, afirma Irna Verena.
“Antes do feminicídio ser tipificado, um homicídio podia ter penas entre seis e 20 anos. Já crimes contra o patrimônio, como roubo com morte (latrocínio), podiam ser punidos com até 30 anos. O recado era claro: a vida de uma mulher valia menos. Além disso, havia o uso recorrente da chamada ‘legítima defesa da honra’, uma tese ultrapassada, machista e inconstitucional, que buscava justificar o assassinato de mulheres sob o argumento de ciúme, traição ou ‘desonra’ masculina. A lei veio corrigir, pelo menos no papel, essa distorção histórica e jurídica”, ressalta a especialista.
Nos primeiros anos de vigência da Lei do Feminicídio, a Bahia registrava, em média, 70 casos anuais. Após 2019, porém, a violência contra a mulher escalou no estado, superando a marca de 100 ocorrências por ano e atingindo o pico de 115 em 2023. No ano passado, foram contabilizadas 107 mortes. Em 2025, até o fim de março, já se somam 24 vítimas – ritmo comparável com o observado nos últimos anos e que sinaliza a possibilidade de o total anual repetir a tendência recente. Fevereiro desponta, por enquanto, como o mês mais letal de 2025, com 11 assassinatos.
No recorte geográfico, Salvador concentra o maior número de feminicídios no decênio analisado, com 128 vítimas. Em seguida aparecem Feira de Santana (29), Juazeiro (21), Porto Seguro (20) e Teixeira de Freitas (15).
Perfil das vítimas
A desembargadora Nágila Brito, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), diz que há um padrão nas vítimas de feminicídio no estado. “Fizemos um levantamento entre as comarcas o qual apontou que 86,26% das vítimas de violência doméstica são mulheres negras, com idade entre 20 e 39 anos. Os crimes são praticados por seus companheiros, geralmente pela noite. Isso gera uma preocupação, porque o lar deveria ser o lugar onde elas estariam mais seguras”, afirmou.
A Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) afirmou, em nota, que vem ampliando a rede de proteção: criou o Departamento de Proteção à Mulher, Cidadania e Pessoas Vulneráveis (DPMCV) na Polícia Civil e transformou a Operação Ronda Maria da Penha em Batalhão de Proteção à Mulher, para aumentar o alcance do atendimento.
Atualmente, segundo a SSP-BA, o estado dispõe de 15 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) e 13 Núcleos Especiais de Atendimento à Mulher (NEAMs), voltados à prisão de agressores. A Polícia Militar também informou realizar visitas periódicas às mulheres que contam com medida protetiva. De acordo com a PM, elas têm contato direto com as patrulhas e, caso a ordem judicial seja descumprida, o agressor é preso imediatamente.