A coordenadora do Lupa Feminista, Thaís Pereira Siqueira, fala sobre os 10 anos da Lei do Feminicídio
Ao falar sobre a primeira década da Lei do Feminicídio, a psicóloga e coordenadora do Lupa Feminista, Thaís Pereira Siqueira, argumenta que a mesma ainda está em processo de implementação. Isso porque, explica, os crimes de feminicídio íntimo ou vinculados a situações de violência familiar são mais tipificados. “No que tange ao desprezo e discriminação à condição de sexo feminino, ainda há muita subnotificação. Casos em que essas mortes ocorrem em outros contextos, como tráfico/crime organizado, por exemplo, os feminicídios acabam sendo invisibilizados”, afirma a psicóloga em entrevista ao Brasil de Fato RS.
Citando o caso da indígena kaingang Daiane Griá Sales, a psicóloga pontua que há um longo caminho a percorrer, principalmente no reconhecimento dos crimes de feminicídio que escapam à violência doméstica e familiar. “Feminicídio é um crime de ódio, ou seja, misoginia. Nós temos visto a intensificação desse ódio, isso se reflete dentro e fora de casa.”
Abaixo a entrevista completa.
Brasil de Fato: A Lei do Feminicídio completou dez anos de vigência em março deste ano. Qual a avaliação que tu faz sobre essa primeira década da lei, a importância que ela tem e os impactos que trouxe para a sociedade?
Thaís Pereira Siqueira: A importância da Lei do Feminicídio veio no sentido de visibilizar esse tipo de crime, que antes, não considerava os componentes e a perspectiva de gênero que existe nesses crimes, esse já é um primeiro impacto. Mostrar que as mulheres são assassinadas exatamente por serem mulheres. E se é um crime evitável, o Estado tem responsabilidade quando ocorre.
A Lei ainda está em processo de implementação, visto que os crimes de feminicídio íntimo ou vinculados a situações de violência familiar são mais tipificados. No que tange ao desprezo e discriminação à condição de sexo feminino, ainda há muita subnotificação. Casos em que essas mortes ocorrem em outros contextos, como tráfico/crime organizado, por exemplo, os feminicídios acabam sendo invisibilizados. As diretrizes nacionais apontam no mínimo 13 situações e ainda essa semana houve uma atualização por parte do governo federal desse material.
Recentemente, ocorreu o julgamento do caso da Daiane Griá Sales, uma menina indígena de 14 anos assassinada em Redentora no ano de 2021. Ela foi estuprada e assassinada em seguida. Além disso, o fato de ser uma menina indígena, o que também a deixava mais vulnerável. O caso foi considerado etnofeminicídio, a primeira decisão no país nesse sentido.
Sendo assim, ainda há um longo caminho a percorrer, principalmente no reconhecimento dos crimes de feminicídio que escapam à violência doméstica e familiar. Feminicídio é um crime de ódio, ou seja, misoginia. Nós temos visto a intensificação desse ódio, isso se reflete dentro e fora de casa.
No especial que fizemos com mulheres que atuam no sistema de justiça e que lidam com a questão da violência de gênero, elas pontuam que somente a lei não basta. Na tua avaliação o que precisaria ser feito para que possamos mudar a realidade de violência de gênero no país?
É preciso que haja uma mudança na cultura para que haja mudança na realidade em relação à violência de gênero. Precisamos de políticas públicas de prevenção, um trabalho intenso na área da educação e da cultura, campanhas de conscientização. Além de todo o investimento em equipamentos como Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), Centros de Referência de Atendimento à Mulher (Crams), Casas Abrigo, entre outros. Aquilo que se chama de trabalho em rede, onde tu tens que ter políticas transversais em diversas áreas para que as mulheres consigam sair da situação de violência, trabalho, educação, tanto pra ela quanto para seus filhos, saúde, etc.
Para isso é preciso investir fortemente em políticas públicas para as mulheres e quando se faz essa afirmação, isso diz respeito a orçamentos dignos, equipes qualificadas. Sem dinheiro, não tem política pública. É um trabalho de médio e longo prazo, não pode ser interrompido, sucateado, encerrado, como tem acontecido nos últimos anos. A implementação total da Lei Maria de Penha é importantíssima e a formação permanente de profissionais que trabalham com esse tema tem que estar sempre ocorrendo, isso evita revitimização.
Como tu analisa a aplicação da lei? E também da alteração sancionada pelo presidente Lula da ampliação do tempo de reclusão e a classificação do feminicídio como crime hediondo?
A aplicação da lei, a partir do trabalho que a gente vem desenvolvendo no nosso Observatório Lupa Feminista, nos estudos baseados nos dados oficiais como o Anuário de Segurança Pública, Atlas da Violência, a partir das diretrizes e outros documentos internacionais, tem tido um viés de aplicação que são casos de violência doméstica e familiar, é preciso ainda a ampliação da compreensão que abrange outras situações.
As legislações brasileiras no campo da violência contra as mulheres são maravilhosas, o que precisamos é que a lei não exista sozinha, precisamos das outras ações. O aumento da punição não causa efeitos sozinho. Trata-se de qualificar corretamente os feminicídios, ter políticas de prevenção, atendimento, acolhimento, acesso à segurança e à justiça, reparação e memória.
“As mulheres continuam sendo culpabilizadas pelas violências que sofrem”
Apesar da lei, o país registra cerca de 1 mil assassinatos de mulheres por ano. Que fatores poderiam explicar que mesmo com a lei, e outros dispositivos, os números desse tipo de crime seguem elevados?
Patriarcado, misoginia, machismo, racismo, lesbotransfobia. Essa é a cultura brasileira. Por exemplo, somente em agosto de 2023 o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que uso da tese da defesa da honra é inconstitucional. Há uma cultura da violência contra a mulher, apesar dos muitos avanços que vêm ocorrendo, e, não se pode esquecer que há subnotificação nos dados. Ou seja, se os recortes oficiais já demonstram a gravidade da violência de gênero e dos feminicídios, a situação é muito mais alarmante.
Dentro do debate do feminicídio também tem a questão da tentativa, situação que por muitas vezes não tem tanta visibilidade, das sequelas que ficam desse crime.
Como psicóloga, como tu vê a situação dessas mulheres, tanto no acolhimento como impactos psicológicos?
O tema das sobreviventes de tentativa de feminicídio é muito importante dentro desse debate e bem pouco falado. O Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivass tem trabalhado muito com esse tema e possibilitado a algumas sobreviventes acolhimento e a possibilidade de contar suas histórias. A coordenadora desse movimento, a Carol Santos, é uma sobrevivente de tentativa de feminicídio, a Maria da Penha, que dá nome à lei, é uma sobrevivente de tentativa de feminicídio.
São muitas as sequelas, físicas e psicológicas, geralmente são mulheres que já viviam situações intensas de violência e já com impactos importantes na saúde física e mental, situação que chegou ao ápice com a tentativa de tirar a vida dela.
Há medo, um estado de alerta permanente, muitas ficam mais reclusas, e precisa de rede de apoio, e isso inclui família, amigas/os, serviços estatais para dar suporte a essas mulheres. É necessário sempre frisar a necessidade do suporte estatal, pois o Estado tem responsabilidade sim em dar esse suporte.
Nós tivemos recentemente três tentativas de feminicídio gravíssimas, em uma delas a mulher está precisando de apoio neurológico, fisioterapia e fonoaudiologia para poder se recuperar, necessitando de tratamento permanente.
Outras duas mulheres foram queimadas com álcool e água quente. Há uma intensificação da crueldade. Os serviços como os Centros de Referência de Atendimento às Mulheres são equipamentos de apoio importantíssimos tanto para o rompimento do ciclo quanto para que as mulheres que sobrevivem a tentativas de feminicídio tenham apoio psicológico, social, jurídico e tenham os encaminhamentos necessários, além disso, muitas têm filhos e são as únicas responsáveis por eles.
“Sem dinheiro, não tem política pública”
O silenciamento ainda é uma realidade?
Sim, ainda há uma dificuldade das mulheres em buscar ajuda, e é preciso fazer uma leitura disso a partir de alguns aspectos importantes. As mulheres continuam sendo culpabilizadas pelas violências que sofrem. E isto está internalizado para muitas, que se sentem culpadas, que acham que falharam, que poderiam ter feito algo que desagradou, justificando a violência. Junto a este sentimento, está a vergonha pelo que ocorreu.
Outro aspecto é o medo, o registro de um Boletim de Ocorrência (BO), a separação, são momentos de risco para as mulheres, momentos em que as tentativas e consumação de feminicídios ocorrem.
Ainda tem as ameaças em relação aos filhos, dizendo que elas irão perder a guarda, os direitos sobre os filhos. Tem a questão da confiança nas instituições, muitas procuram outras formas de resolver a situação e não procuram a polícia para registrar BO, não pedem a Medida Protetiva de Urgência (MPU). Sair de casa para ir para um abrigo também não é fácil, dependendo das regras, algumas precisam deixar os filhos com outras pessoas. Ou seja, são vários elementos que compõem essa dinâmica do silenciamento.