Mulheres quilombolas enfrentam escalada de feminicídios

04 de dezembro, 2024 AzMina Por Jane Fernandes

Comunidades ficam sem proteção, concentradas em áreas rurais, com pouca infraestrutura e acesso reduzido a serviços públicos

  • Tainara Santos desapareceu em outubro deste ano, e seu ex-companheiro é suspeito de feminicídio. O caso reflete o aumento de feminicídios em comunidades quilombolas.
  • Problemas de infraestrutura básica, como a falta de sinal de telefone, delegacias próximas e iluminação pública, dificultam denúncias e proteção para mulheres quilombolas.
  • Movimentos comunitários e projetos governamentais apoiam as mulheres quilombolas na busca por autonomia econômica e acesso à justiça, mas as ações ainda são insuficientes.

Tainara Santos, 27 anos, está desaparecida desde 9 de outubro deste ano. Ela pertence à comunidade quilombola de Acutinga Montego, no município baiano de Cachoeira. Se as suspeitas se confirmarem, ela será mais uma vítima da escalada de feminicídios nos quilombos. As últimas pesquisas da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) mostram que a média de mortes de mulheres nessas localidades mais que dobrou.

Todas as 9 mulheres quilombolas assassinadas entre 2018 e 2022 foram vítimas de feminicídio. Uma delas foi morta com o filho de 18 anos, que tentou defendê-la, em Conceição das Crioulas (PE). Em cinco anos, o total de casos (nove) já superou os 8 feminicídios registrados pela Conaq na década anterior (entre 2008 e 2017). Isso num universo de cerca de 650 mil mulheres quilombolas no Brasil.

E não há sinais de reversão desse quadro.  Na Bahia, estado com maior população quilombola do país, até a publicação desta matéria, houve um feminicídio confirmado e o desaparecimento de Tainara Santos.

Tainara estava com o ex-companheiro, George Anderson Santos, 43 anos, quando foi vista pela última vez. Ele está preso preventivamente desde 15 de outubro, como suspeito de feminicídio, mas nega ter matado a jovem quilombola ou saber o que teria acontecido com ela.

Relacionamento marcado por violência

A relação de Tainara com George foi marcada por violências, segundo sua irmã Itamara dos Santos. Após várias tentativas de romper com ele, ela finalmente tinha conseguido. Alguns meses depois, quando a ex-companheira iniciava um novo relacionamento, George levou a filha do casal para morar com ele, contra a vontade da mãe. Itamara acredita que Tainara tenha ido encontrá-lo para tentar ver a menina.

Algumas semanas após o desaparecimento de Tainara, a criança foi morar com a avó materna. Itamara conta que frequentemente vai à delegacia saber das investigações e a resposta é sempre que corre em segredo de justiça. AzMina buscou a Polícia Civil da Bahia, por meio da assessoria de imprensa, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.

A trancista Gleiciene dos Santos, 19 anos, da comunidade quilombola Coqueiros, em Mirangaba (BA), foi encontrada morta por estrangulamento após sair para encontrar o namorado em março deste ano. O suspeito, que era procurado pela polícia, cometeu suicídio, dias depois.

O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que a violência contra a mulher persiste em todo o país, com um crescimento de 0,8% em feminicídios e 7% nas tentativas de assassinatos de mulheres, entre 2022 e 2023. O avanço acelerado desse crime nas comunidades quilombolas, confirmado pelas médias nacionais, mostra a urgência de um enfrentamento que considere as características específicas das áreas remanescentes de quilombo.

Impossibilitadas de denunciar

“Até hoje existem comunidades sem energia elétrica. Como uma mulher de um território dessa realidade vai entrar em contato com um órgão que fica na capital?”, observa Micele Silva, integrante do Coletivo de Mulheres da Conaq e da comunidade Igarapé Preto, que se espalha por três municípios do Pará. A pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2018-2022) destaca que muitas comunidades não têm sinal de celular, nem internet.

Mesmo nas comunidades quilombolas urbanas, a realidade das mulheres é parecida. Um exemplo é Rio dos Macacos, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador (BA). É possível chegar de carro ao local, mas não há iluminação pública, nem vias internas pavimentadas em toda a extensão demarcada (940 mil m2), onde vivem cerca de 200 famílias quilombolas.

“É tudo mato, os caminhos cheios de lama, se tentar entrar o carro atola, como uma viatura vai chegar?”, questiona Rose Santos Silva, 46 anos. Para ela, há soluções possíveis, mas falta vontade política.

“Eu particularmente não penso em dar queixa (de violência), porque não funciona como deveria e a vida da mulher fica mais em risco ainda”, revela, alegando que os denunciados costumam reagir de forma raivosa. Quem ajuda as vítimas também entra na mira dos agressores, como já aconteceu com ela, que foi ameaçada duas vezes nessas situações.

Elas se afastam dos seus

Sem garantia de proteção, as mulheres acabam saindo de suas comunidades, obrigadas a se afastar da família, das amigas e às vezes até dos filhos, porque não têm como levá-los junto. Enquanto os agressores permanecem em casa, vivendo normalmente sem serem incomodados.

“O delegado disse ‘você vai escolher viver ou perder sua vida dentro da comunidade, aconselho você a sair’”, conta Rose sobre o atendimento a uma das vítimas que ela acompanhou. As comunidades quilombolas têm contexto social específico, com uma vida efetivamente comunitária, onde há a ideia de família estendida, e isso dificulta manter um distanciamento.

Selma Dealdina Mbaye, integrante do Coletivo de Mulheres da Conaq, acrescenta que é preciso lutar contra a cultura machista nas comunidades. “É comum as pessoas acharem normal as mulheres serem agredidas pelos companheiros, como se fosse uma questão cultural. Se a mulher não tem o apoio da família, como ela vai denunciar um terceiro?”.

‘Ligue 180’ não alcança comunidades

Apenas 4% das ligações para o Ligue 180 são feitas de áreas rurais, conta Selma Dealdina, que também é organizadora do livro “Mulheres Quilombolas – Territórios de Existências Negras Femininas”. “É um número preocupante! Porque o 180 é a maior ferramenta de denúncia da violência doméstica, e as mulheres do campo, das águas e da floresta não conseguem acessar”.

A maioria das 7.666 comunidades quilombolas fica em zonas rurais e, mesmo quando estão em capitais e regiões metropolitanas, o acesso costuma ser difícil. Se ter uma delegacia especializada no atendimento à mulher por perto é raro nas grandes cidades, no interior é quase impossível. O Brasil tem 5.568 municípios e apenas 500 delegacias especializadas no atendimento feminino.

Cerca de 24% dos municípios brasileiros sequer tinham delegacia de polícia em suas sedes, até 2023 (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), aumentando o deslocamento necessário para registrar ocorrências, pois é preciso ir a outra cidade.

Mesmo nas comunidades com sinal de telefone, o histórico desestimula o acionamento da Polícia Militar (PM) pelo 190. “As mulheres dizem que não vão ligar porque sabem que a polícia só vai em caso de morte. Isso ocorre sempre, não só quando a denúncia é de violência doméstica”, conta Joyce Souza. Ela é coordenadora dos Projetos de Enfrentamento às Violências contra Mulheres Negras do Instituto Odara, que atua na Bahia.

A PM da Bahia informou, em nota, que “se faz presente em qualquer local onde seja acionada, se tratando de algum risco, através do contato 190”. E orienta que caso a demanda não seja atendida, a denúncia deve ser feita na Ouvidoria, com anonimato garantido.

Instrumentos de proteção insuficientes

Ultrapassar as barreiras para denunciar agressões e ameaças e mobilizar a rede de proteção nem sempre basta para deter o agressor. Foi o que ocorreu com Elitânia de Souza, liderança quilombola morta aos 25 anos, em novembro de 2019.  Integrante da comunidade Tabuleiro da Vitória, em Cachoeira (BA), ela foi assassinada pelo ex-namorado, Alexandre Góes, após sair da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde cursava Serviço Social.

Alexandre foi a júri popular em julho deste ano, após cinco adiamentos, e recebeu a sentença de 18 anos de prisão. A pena soma a condenação pelo feminicídio, com qualificadoras de ter sido cometido em emboscada e sem chance de defesa da vítima, agravado pelo descumprimento de medida protetiva.

Selma Dealdina, da Conaq, lembra que a medida protetiva é exceção entre as mulheres quilombolas, não só pela dificuldade de acesso, mas também pela dúvida da efetividade da proteção. “Não estou dizendo que não funcione, porque, em alguns casos, ela (a medida protetiva) tem salvado vidas, mas muitas vezes os homens não respeitam”.

Como o descumprimento de medida protetiva muitas vezes resulta na morte da vítima, cada falha tem um impacto enorme no enfrentamento à violência, mas os números confirmam a importância da ferramenta. Um levantamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal apontou que em 70% dos feminicídios registrados no primeiro semestre de 2023 não havia denúncias prévias contra o autor.

Sobrevivente ajuda outras mulheres

Maria Aparecida Félix Costa, 47 anos, conhece bem o ciclo da violência doméstica, o controle disfarçado de cuidado, os abusos psicológicos e a escalada até a agressão física. A força para sair do relacionamento veio da dor de perder a filha. A bebê que ela gestava nasceu morta cerca de dois meses após o ex-marido dar um murro em suas costas.

Maria nasceu na comunidade quilombola Minério, mas reside na Ilha do Tanque, ambas no município de Maraú (BA). Quando casou, aos 15 anos, ela não sabia reconhecer as violências às quais foi submetida, mas hoje ajuda outras mulheres a identificarem comportamentos abusivos. Após a ocorrência de um feminicídio na sua comunidade, em 2018, ela e outras pescadoras criaram um coletivo para auxiliar mulheres a romper ciclos de violência.

Hoje, o trabalho iniciado por Maria tem o reforço do Instituto Odara, que mantém o projeto “Quilomba – Pela vida das mulheres negras” desde 2022. “A gente busca o fortalecimento comunitário e a discussão sobre a responsabilidade comunitária no enfrentamento à violência doméstica e familiar”, conta Joyce Souza, do Instituto. É nessa perspectiva que apresentam às mulheres a Lei Maria da Penha e os demais instrumentos legais de proteção.

O Odara atua em cerca de 70 comunidades quilombolas da Bahia e o foco nas redes comunitárias não impede cobranças ao poder público. Uma sequência de audiências públicas com gestores municipais começou em julho deste ano e já alcançou os municípios de Seabra, Boninal, Bom Jesus da Lapa, Palma de Monte Alto e Riacho de Santana.

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