(Jornal USP | 12/04/2022 | Por Eva Alterman Blay*)
Por décadas, os movimentos feministas voltaram-se para a conscientização das mulheres, de seus direitos, procurando fortalecê-las. A violência de gênero levou a militância feminista, desde a década de 1970, a criar entidades de apoio às mulheres. A crescente denúncia das violências nas relações familiares impôs que o Estado interviesse nas relações familiares, campo tradicionalmente considerado privado: instalou-se um novo paradigma obrigando que fossem criadas instituições de Estado que interviessem nas relações afetivas, íntimas, privadas, onde ocorriam abusos, violência e crimes.
Os feminismos e os movimentos de mulheres, muito atuantes durante a ditadura de 1964 a 1985, impulsionaram o rompimento dos valores conservadores que impunham normas e comportamentos patriarcais certamente fortalecidos por diversas religiões. A elevação dos níveis educacionais, especialmente das mulheres, a ampliação do mercado de trabalho e a difusão da comunicação vieram romper a mentalidade conservadora relativa à sexualidade feminina. Mais do que a liberdade sexual, uma das consequências visíveis do ponto de vista populacional foi a redução da taxa de natalidade. Sem esquecer que esse fenômeno foi distinto quando se consideram as jovens mais pobres e pretas, entre as quais avultou a gravidez das adolescentes e os abortos inadequados.
Nos últimos oitenta anos, passamos de uma sociedade agrário-industrial para a produção em massa, a eletrônica e a tecnologia da informação. Pouco falta para expandirmos a 5ª revolução industrial, a Inteligência Artificial, os drones, as nuvens etc. As relações sociais têm acompanhado essas revoluções tecnológicas com grandes sobressaltos e enormes desigualdades. As mulheres descobriram que a maternidade não era um destino inquestionável, que ela poderia ser ou não concretizada e que era perfeitamente compatível com outros papéis sociais. Paradoxalmente romantizaram-se um casamento tradicional, a mítica noiva de branco, os enlaces de princesas das casas reais, artistas de cinema, modelos etc., alimentando a fantasia das jovens (de todos os sexos). É nesse cenário pleno de contradições que avulta, na realidade, a brutal violência contra mulheres e meninas, os feminicídios e os estupros.
Quando buscamos entender por que as mulheres são cada vez mais assassinadas, por que as meninas e as mulheres de todas as idades são estupradas, menos do que uma resposta, nos deparamos com uma grande falha: nós, feministas, percorremos um processo ao fortalecer as mulheres para que elas tivessem a liberdade de traçar seus destinos, que seus corpos fossem respeitados. Encontramos um vácuo: quase nada foi feito para que meninos e homens descobrissem seus corpos, a sexualidade, os direitos de seus pares, substituíssem o patriarcado por novas relações sociais igualitárias.
O programa He For She, inspirado na ONU (2014), atacou a desigualdade de gêneros através de ações voltadas para o mercado de trabalho: a proposta visava a incentivar que os dirigentes das empresas, 99% homens, procurassem abrir espaços para a entrada de mulheres nos altos postos de trabalho. Ação semelhante estendeu-se para as universidades incentivando a inclusão de mulheres nas carreiras onde elas pouco participavam. Apesar de frutíferas, essas ações partiam de uma visão de mercado, capitalista, e ignoravam as condições da educação da sexualidade masculina e sobretudo as relações sociais de gênero igualitárias.
A reeducação dos homens autores de violência doméstica foi uma inovação trazida pela Lei Maria da Penha. Embora relativamente recente no Brasil, esse serviço já existia desde o fim da década de 1970 no Canadá e nos Estados Unidos, por iniciativa de homens feministas. No Brasil, Fernando Acosta trabalhou por 20 anos com a questão da violência de gênero. Acosta e Musumeci, entre outros, destacam que a violência de gênero é questão relacional, complexa e que tanto homens como mulheres podem exercer a violência. Os comportamentos e as reações variam conforme fatores como classe, raça, idade, exercício do poder e experiencias familiares na infância.
Dentre os poucos estudos que abordam a formação da masculinidade do ponto de vista da sexualidade, da educação, dos valores éticos ou religiosos, a inovadora tese de Elisabeth Fleury analisa as influências dos valores familiares na formação dos homens. É na infância que aprendem, por exemplo, a ética do trabalho, os valores da família, do casamento e da própria organização familiar. A autora tem o cuidado de não generalizar e concorda com Guacira Louro ao dizer que:
Gênero e sexualidade são construídos através de inúmeras aprendizagens e práticas, empreendidas por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais, de modo explícito ou dissimulado, num processo sempre inacabado. Na contemporaneidade, essas instâncias multiplicaram-se e seus ditames são, muitas vezes, distintos. Nesse embate cultural, torna-se necessário observar os modos como se constrói e se reconstrói a posição da normalidade e a posição da diferença, e os significados que lhes são atribuídos.
Traduzindo essas reflexões para a vida cotidiana, Fleury mostrou, por exemplo, que as raízes de certos comportamentos agressivos, como o ciúme, têm a ver com a formação religiosa ou ainda que “[…] o aprendizado das hierarquias de gênero se dá muito cedo em casa e, posteriormente, é confirmado na socialização secundária, junto com a experiência nas escolas”. Essa perspectiva demonstra como se estruturam comportamentos e valores, os quais consequentemente podem ser desestruturados e modificados.
A proposta da Lei Maria da Penha de submeter os autores da violência a um programa de reeducação encontra obstáculos na ação dos operadores de algumas instituições: todos nós, professores, advogados, promotores, juízes, delegados, escrivães, assistentes sociais, enfim todos os que atuam na recepção, encaminhamento ou julgamento de homens em situação de violência, fomos moldados numa moral patriarcal, hierárquica e misógina. Desestruturar essa ordem de valores e comportamentos implica um projeto de socialização feminista com igualdade de direitos e oportunidades. Os grupos de educação reflexiva atuam com esses objetivos, mas eles são esporádicos e dependem de iniciativas particulares.
Face às grandes mudanças que estão ocorrendo nas universidades, como a USP, por exemplo, e prevendo as próximas eleições, se poderia repensar que as escolas de todos os níveis adotassem um programa de educação focalizando as questões da sexualidade em todos os níveis, começando pelas meninas e meninos. Como sabemos, nas escolas públicas a educação sexual é proibida pelo atual governo (2019-2022), que adota uma visão obscurantista e inquisitorial sobre sexo. As escolas particulares, em geral, são mais abertas elucidando o tema. Se queremos uma sociedade com Justiça Social, não misógina e não patriarcal, é o momento para as universidades proporem cursos com uma ética feminista em todos os cursos.
*Eva Alterman Blay é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.