Homens violentos alternam comportamentos, alerta Promotora de Justiça

29 de julho, 2019

Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, a Dra. Valéria Diez Scarance Fernandes, Promotora de Justiça e Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, fala sobre o lançamento da cartilha #NamoroLegal e os dados de violência contra a mulher

(O Estado de S.Paulo, 29/07/2019 – acesse no site de origem)

Ainda que junho já tenha passado e todas as campanhas sobre o Dia dos Namorados também, é sempre tempo de falar sobre #NamoroLegal. Por quê? Porque no Brasil, 42% das mulheres entre 16 e 24 anos sofreram violência em 2018, segundo Pesquisa Visível e Invisível 2019, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A pedido do Fórum, o Datafolha ouviu mais de 1.000 mulheres sobre violência contra a mulher. 42% delas disseram já ter sofrido agressão dentro de casa. Os principais agressores: cônjuges e namorados, responsáveis por quase 24% dos casos.

536 mulheres foram agredidas por hora. O número de notificações de violência física contra mulheres causadas por seus parceiros, segundo o Ministério da Saúde, quase quadruplicou de 2009 a 2016. A cada dia no Brasil, 15 mulheres são mortas pelo fato de serem mulher. Três de cada cinco mulheres jovens estão em um relacionamento abusivo. Será que é o seu caso? Você saberia identificar?

Embora se fale mais sobre o assunto, que tenhamos feitos avanços significativos nos últimos anos e que contamos com movimentos como a Primavera Feminista, em 2015, e o #MeToo, em 2018, ainda temos a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. E um dos grandes empecilhos ao combate é a tolerância social a esse tipo de violência. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2014, embora 91% dos brasileiros afirmem que “homem que bate na esposa tem de ir para a cadeia”, 63% concordam que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. 89% dos entrevistados pensam que “roupa suja deve ser lavada em casa” e 82% que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Dados que só reforçam a importância de dialogar, também, com quem sofre a violência. Na procura por diminuir as estatísticas e ajudar mulheres a identificar os primeiros sinais de um relacionamento abusivo, o Ministério Público de São Paulo lançou a cartilha #NamoroLegal, sob o comando da Promotora de Justiça e Coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP, Dra. Valéria Diez Scarance Fernandes.

Dra Valéria, do MPSP, foi quem desenhou a cartilha #NamoroLegal com dicas simples e práticas sobre relacionamentos. A ideia é que mulheres e meninas possam identificar ali sinais de comportamentos abusivos e saber o que fazer quando o namorado ou o crush é controlador ao extremo. O material, que conta com o apoio da empresa Microsoft, conta com a tecnologia como aliada. Utilizando Inteligência Artificial, o Ministério Público de São Paulo, a Microsoft e os parceiros Elo Group e Ilhasoft criaram a MAIA (Minha Amiga Inteligência Artifi- cial), uma bot que pode conversar com sobre namoro de uma forma leve e descontraída. Numa tentativa de se aproximar dessa mulher que está sofrendo violência.

Por que fazer a cartilha? Como brotou o projeto? 
“Mulheres jovens e adolescentes sofrem elevados índices de vitimização, mas dificilmente percebem que estão em um relacionamento violento antes de uma marca física ou de um grave sofrimento. Comportamentos de controle, isolamento e ciúmes excessivo são comuns, mas ao mesmo tempo naturalizados no namoro como se fossem “atos de amor”. Na cartilha, há dicas que ajudam a identificar os comportamentos abusivos e o que fazer diante desses comportamentos”.

Qual a preocupação do MPSP frente a este assunto?
“Os índices de violência estão cada vez mais elevados, estimando-se que 3 a cada 5 mulheres jovens sofrem algum tipo de controle/abuso nos relacionamentos afetivos. Apesar disso, não havia no Brasil uma cartilha específica para essas jovens, com uma linguagem apropriada e dicas práticas. Na cartilha, o tema da violência é abordado de forma mais leve, sem referência expressa às formas de violência, ou uso das palavras vítima e agressor, justamente porque a maioria das mulheres não se identifica como vítima antes de uma marca física. Apesar disso, a cartilha traz dicas muito importantes que podem ajudar adolescentes e jovens, mas também mulheres adultas, a impor limites a comportamentos abusivos e desta forma prevenir a violência severa. A campanha surge como um instrumento de conscientização, prevenção à violência e feminicídio”.

O que significa um namoro destrutivo para uma menina? 
“O relacionamento abusivo envolve três aspectos fundamentais: controle, isolamento e ciúmes excessivos. Essa dominação acontece aos poucos, com pequenos gestos, críticas constantes, comentários ofensivos, ataques seguidos de pedidos de desculpas, o que torna mais difícil para a mulher identificar a situação. A cartilha Namoro Legal aborda, dentre outros temas, a escolha consciente do parceiro, território de segurança, igualdade no relacionamento, autonomia, indicadores de violência psicológica e inversão da culpa”.

As dicas partiram de qual base ou estudo?
“As dicas que integram a Cartilha Namoro Legal têm base científica e empírica. Foram elaboradas com base em meus estudos como Professora Doutora e Pesquisadora da PUC-SP, bem como minha experiência de mais de 20 anos de Promotora de Justiça, em que atuei em centenas de casos, mesmo antes da criação da Lei Maria da Penha”.

Uma das dicas fala sobre valorizar seu espaço próprio. E uma das primeiras atitudes que a gente vê na mulher é o negligenciamento desse espaço e das relações que ela tem em nome do namoro. O problema é que começa aos poucos e a menina não percebe ou até acha que não tem problema deixar de fazer “só isso” por conta do namorado. Como dizer não logo de cara? O que é importante preservar? 
“Uma das dicas – “seu espaço é só seu” – menciona justamente esse espaço que traz segurança e autonomia para a jovem. Nele, estão as pessoas mais importantes para ela, como família e amiga de confiança, atividades que gosta de fazer, lugar preferido, seus dons, seu estilo, sua essência. Preservando-se esse território, é possível prevenir situações perigosas, como o isolamento. É importante nunca abrir mão desse território seguro pela vontade do parceiro. Aqui, não existe negociação, nem o “só isso””.

No código da “namorada ideal” é grande o machismo que existe no fato do homem dizer a mulher como ela deve se vestir, se portar e usar o cabelo. São fatores muito presentes na nossa sociedade e que foram naturalizados. Como a menina pode entender que isso não é prova de amor e que relacionamento não se fortalece quando você deixa de ser quem você é? 
“Não existe o Código da Boa Namorada, pois nenhuma garota, ou mesmo a mulher adulta, está obrigada a seguir um manual de regras para ficar com o parceiro. Uma relação saudável é construída com base na confiança e dedicação dos dois, em igualdade. Ao aceitar as exigências do parceiro, contra sua vontade, a mulher manda um claro recado de que a relação está em primeiro lugar e está disposta a abrir mão de seu “eu” pelo parceiro. Pode ser o início de um caminho de dominação e despersonalização. Às vezes, o namorado ameaça terminar o relacionamento caso exigência não seja atendida. Se isso acontecer, não há alternativa para a garota senão impor limites bem definidos, o u ele perceberá que a domina e ficará mais difícil dizer “não” da próxima vez”.

Amor não é posse, mas quem vive um relacionamento abusivo sentir-se possuída é um fator de peso. Normalmente, ela já se afastou das pessoas que gostava e está sozinha com essa pessoa. A sensação de ser amada está neste controle. O que fazer? 
“A cartilha #NamoroLegal trata dessa questão na dica “não vá morar na lua”. O namoro é uma parte importante da vida, mas só uma parte. Além do namoro, existem outros aspectos importantes da vida e que devem ser preservados: família, amigos, trabalho, estudo, autonomia. É muito importante para a jovem manter-se conectada a pessoas de confiança e atividades que dão autonomia. Se já aconteceu o isolamento, deve-se retomar esses laços, ainda que contra a vontade do parceiro. Homens violentos usam o isolamento como estratégia para diminuir a possibilidade de resistência das parceiras. Assim, todo cuidado é pouco, principalmente quando o namorado cria situações deliberadas para o afastamento”.

Você fala muito da importância da menina não se afastar das coisas que ela gosta e do que é importante pra vida dela. Como ter forças pra isso? Como perceber essa importância, principalmente quando a autoestima já está baixa? 
“Preservar a autoestima é um exercício diário. Para isso, a mulher deve manter-se conectada ao território seguro, que já mencionamos. Deve estar próxima de pessoas que sejam realmente de confiança, que lhe deem bons conselhos e saibam reconhecer seus talentos. Um passo por dia no caminho do fortalecimento. Se precisar de ajuda profissional, deve procurar”.

A mulher que está nessa relação sempre acha que o homem vai mudar. Ele promete que não vai mais fazer isso ou aquilo e ela se apoia na fala para se manter no relacionamento. Como perceber que esse cara não vai mudar? E que é ela quem tem que sair da relação? 
“Homens violentos alternam comportamentos de ataque com comportamentos doces e gentis. Eles normalmente culpam as parceiras quando perdem o controle e só são violentos com as parceiras, não com estranhos. Por isso, muitas mulheres acreditam que elas são as responsáveis pela agressão e com seu amor e dedicação tem o poder de transformar o parceiro. Isso não acontecerá. Homens assim carregam dentro deles um padrão violento, aprendido ao longo da vida. Nada que a parceira faça mudará esse padrão. Quanto mais ela se submeter, mais violento ele se tornará. Apenas um programa oficial, específico para autores de violência, poderá mudar esse comportamento. É importante não se iludir: fera não vira príncipe com o amor da mulher”.

Existe um nome para esse lugar de violência em que a mulher se encontra? 
“Nenhuma mulher escolhe um parceiro violento. A relação violenta tem início como qualquer outra, com uma fase de encantamento e sedução. Aos poucos, o parceiro começa a exercer atos de controle, isolamento, rebaixamento moral. A violência só acontece quando a mulher já está submetida, insegura, frágil. Depois do ato violento, o agressor fica gentil e amoroso, mas a violência volta se repetir, cada vez com maior intensidade. Essa repetição dos atos violentos associada a uma sensação de impotência faz com que a mulher não consiga mais reagir, é como se ela não tivesse saída. É a chamada Síndrome do Desamparo Aprendido. Assim, mulheres não abandonam parceiros e não reagem porque não conseguem”.

E quem pode ajudá-la? Ela deve pedir ajuda? Existem órgãos públicos preparados a dar apoio psicológico a mulheres e meninas? 
“Ninguém precisa estar só. Ela pode pedir ajuda a um familiar, uma amiga, uma professora, conselho tutelar ou rede pública. Se estiver acontecendo um ataque, é importante chamar a polícia pelo 190. Se não for uma situação de emergência, é possível fazer denúncia anônima pela Central 180. Além disso, nas cidades há redes especializadas de atendimento para pessoas que vivem situação de violência, o que pode ser facilmente encontrado. Em casos de tristeza extrema, risco de suicídio, existe um telefone que atende 24 horas: basta DISCAR 188”.

Por Carolina Delboni

 

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