Equidade de direitos das adolescências e diversidade nos espaços educativos

10 de junho, 2017

A permanência na escola pode não ser uma realidade para todos, em particular para meninos e meninas LGBT. A educação para as diferentes infâncias e adolescências é, efetivamente, a oportunidade para impulsionar as mudanças necessárias

(Nexo, 10/06/2017 – acesse no site de origem)

Considerando a importância fulcral que a escola ocupa na construção da identidade dos indivíduos e na sua interação em sociedade, lhe é atribuído o papel de promotora do desenvolvimento e catalisadora de mudança social. No Informe Mundial sobre a Violência contra Meninos e Meninas (2006) esse potencial é destacado como sendo o mais importante em qualquer país do mundo. A escola constitui-se como um espaço de oportunidades para ensinar novos modelos de vida em sociedade, não violentos, mais justos e mais solidários. A esse potencial, soma-se o fato de reunir uma diversidade étnico-racial, religiosa, sexual e cultural, e diferentes atores e experiências sociais da comunidade.

O direito à educação, em igualdade de condições de acesso e permanência, é um direito humano de todas as crianças e adolescentes, sem distinção. No entanto, tão importante quanto o acesso é considerar que, do ponto de vista da diversidade na educação, há muitas questões que determinam as condições da permanência. Se nos últimos anos tivemos significativos avanços no acesso de meninos e meninas, mais recentemente, temos assistido à emergência de discussões em torno da reprodução de iniquidades no espaço escolar. A hierarquização das diferenças, o “outro” concebido como estranho à luz de modelos pré-concebidos, determinam os lugares e a posição a ser ocupada e criam barreiras para a mobilidade social. Assim, a igualdade de condições para a permanência na escola pode não ser uma realidade para todos, em particular para meninos e meninas LGBT.

Um retrato dessa situação são os resultados obtidos na “Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil – as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais”, publicada em 2016 pela Secretaria de Educação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Participaram da pesquisa um total de 1.016 estudantes com idades entre 13 e 21 anos, que responderam a um questionário sobre as suas experiências pessoais nos ambientes educativos.

Entre as principais conclusões, o estudo identificou que 73% dos entrevistados já sofreram algum tipo de agressão verbal em função da sua orientação sexual, e 68% por causa da sua identidade/expressão de gênero, o que reforça o quanto a violência, também na sua manifestação simbólica de imperativos e imposição moral e normativa, afeta particularmente a vida desses adolescentes. E não só, pode alimentar um ciclo vicioso de violações culminando em alguns casos na negação do próprio direito à vida, seja pelo homicídio de adolescentes com base no ódio irracional, seja pelo suicídio de adolescentes pelo seu não-reconhecimento e desproteção social. De algum modo, a fragilidade no cumprimento por parte do Estado do seu dever de proteção integral e a invisibilidade jurídico-normativa da população LGBT contribuem para esse cenário.

Em relação à percepção sobre segurança, na pesquisa por enquete realizada em dezembro de 2016 pelo projeto U-Report Brasil do UNICEF, com 958 respostas de adolescentes, 61% dos respondentes consideram que a escola não é um lugar seguro para adolescentes LGBT, e cerca de 35,8% dos adolescentes participantes da Pesquisa Nacional já foram agredidos fisicamente. Arrisca-se a afirmar que, em menor ou maior grau, o sentimento de insegurança, de medo, que essa parcela da população sente nas ruas e em outros espaços públicos, de um modo geral, tem sido reproduzido também no espaço escolar. Seja pelo medo de expressarem a sua identidade de gênero ou sexualidade, como indicam 46% dos participantes da enquete, seja pela insegurança na sua instituição educacional em função de sua orientação sexual e identidade/expressão de gênero, mencionada na Pesquisa Nacional por 60,2% e 42,8% dos entrevistados, respectivamente.

Essas diferentes formas de violência, agressão física ou verbal, e a insegurança generalizada também impactam diretamente no rendimento escolar dos adolescentes. A Pesquisa Nacional verificou que a probabilidade de os entrevistados faltarem às aulas aumentava quando submetidos a situações discriminatórias e que estas, ainda, reduziam o seu sentimento de pertencimento à sua instituição de ensino. Por um lado, tem-se o enfraquecimento da confiança nas relações interpessoais tão importante na socialização dos adolescentes, por outro, a escassez de mecanismos institucionais adequados e à medida das necessidades dos adolescentes.

Nestes termos, de que forma os ambientes educativos têm respondido à complexidade desses problemas e os seus efeitos? Como o seu potencial endógeno tem sido considerado na busca por soluções? Existem diferenças entre adolescentes que precisam ser reconhecidas e consideradas? Que entraves são identificados? A Pesquisa Nacional revelou que para 36% dos participantes, segundo a sua percepção individual, as respostas dadas pela escola foram ineficazes para impedir situações de agressão. Porém, 88% dos respondentes identificaram pelo menos uma pessoa da equipe educacional como uma pessoa acolhedora para fazer face a este problema.

Sabe-se que a escola é por essência a oportunidade de criação de laços sociais e de um ambiente saudável baseado em direitos, especialmente o direito à participação e à não-discriminação, como preconiza a Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança. Nela, círculos virtuosos de afetos são criados e, portanto, um espaço para o exercício pleno da liberdade de escolha e promoção da cidadania é materializado. No entanto, diante deste cenário, um primeiro passo seria compreender criticamente que os ambientes educativos podem ser um espaço de normalização de determinadas violências baseadas numa cultura machista, racista, sexista e, a partir disso, reconhecer os seus desafios inerentes. Sugere-se uma visão crítica, mas associada ao reconhecimento do potencial de mudança desses espaços.

Respostas sociais transformadoras, sobretudo no âmbito da participação dos adolescentes, têm surgido. A constituição da Rede Nacional de Adolescentes LGBT e a Campanha Ana (Aliança Nacional dos Adolescentes) são exemplos de círculos virtuosos de participação e proteção entre pares, organizações coletivas de cidadania dos adolescentes no intuito de incidir pelos seus direitos. A produção da Campanha Defenda-se centrada na autonomia das crianças e na sua autodefesa contra as diferentes expressões de violência sexual, inclusive a de gênero, é outro exemplo, já que as crianças estarão, consequentemente, melhor preparadas na fase da adolescência.

Portanto, a educação para as diferentes infâncias e adolescências é, efetivamente, a oportunidade para impulsionar as mudanças sistêmicas necessárias. Contudo, a sua permanência com qualidade será tanto mais benéfica quanto maior for a priorização e a atenção dada aos riscos provenientes da invisibilidade dos problemas indicados. Espera-se que o avanço pretendido na redução das iniquidades considere as diferenças revestidas do sentido emancipatório adequado. E, parafraseando o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que essas diferenças sejam reconhecidas toda vez que a igualdade descaracterizar os adolescentes, mas também os igualar, quando por algum motivo, essas mesmas diferenças os inferiorizarem.

Beatriz Caitana é socióloga e especialista de articulação no Centro Marista de Defesa da Infância / Rede Marista de Solidariedade

Vinícius Gallon é analista e coordenador da Campanha Defenda-se no Centro Marista de Defesa da Infância / Rede Marista de Solidariedade

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