‘As lésbicas são invisibilizadas em vida e em morte’, diz Milena Carneiro, idealizadora do ‘Lesbocídio’
(Catraca Livre, 12/09/2017 – acesse no site de origem)
Em abril de 2016, Luana Barbosa dos Reis – uma mulher lésbica, negra, mãe e periférica – morreu após ser espancada por três policiais militares na frente do filho de 14 anos em Ribeirão Preto (SP).
A repercussão deste caso de lesbocídio, vinculado ao fato de não existir informações específicas sobre violência contra lésbicas no Brasil, fez com que a estudante de Serviço Social pela UERJ, Milena Carneiro, decidisse criar um projeto para reunir histórias e dados desses crimes.
“Eu, enquanto lésbica não feminilizada, sofro agressões por ser lésbica desde que me entendo por gente. Ver o assassinato da Luana me instigou a refletir sobre onde estavam os outros casos”, afirma a estudante ao Catraca Livre.
As lésbicas são vítimas de violências diárias, como estupro corretivo e feminicídio. Entre 2012 e 2014, estima-se que cerca de 9% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100 — serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos — eram lésbicas (Liga Brasileira de Lésbicas – LBL) No entanto, ainda hoje não há dados específicos sobre esses crimes.
“Essa busca [por outros casos] me fez perceber que os registros sobre as violências que as lésbicas sofrem são precários, raros e incompletos. As lésbicas são invisibilizadas em vida e em morte”, completa.
A pesquisa idealizada por Milena, que ainda está em andamento, foi divulgada em uma página no Facebook, intitulada Lesbocídio. Por meio de um questionário do Google, a iniciativa quer documentar esses relatos, que podem ser enviados pela vítima ou por terceiros. A vítima não precisa se identificar ou ser identificada.
Segundo a estudante, o projeto tem dois objetivos principais: criar um banco de dados nacional, ainda que não institucionalizado nas ferramentas estatais, mas que possa pressionar a criação de políticas de segurança, saúde, educação, principalmente para as lésbicas; e, em segundo lugar, resgatar a memória coletiva dessas lésbicas que tiveram suas vidas ceifadas pelo sistema.
Abaixo, Milena Carneiro fala mais sobre a pesquisa e reflete a respeito da violência contra lésbicas no país:
Catraca Livre: Por que ainda hoje a lesbofobia é usada pela mídia como homofobia?
Milena Carneiro – Existem duas perspectivas que podem ser adotadas para tentar compreender o que motiva a utilização do termo homofobia em detrimento da lesbofobia.
A primeira, pelo ponto de vista da estratégia política que os termos trazem. A sociedade, de uma forma geral, ainda não utiliza vários termos da comunidade LGBTQIA+, como, por exemplo, a transfobia, a homolesbotransfobia, entre outros.
Essa ausência de termos pode significar apenas que são questões relativamente novas para uma sociedade deficiente em educação, como a nossa, principalmente em um país em que a educação não é uma prioridade, que não pauta gênero e sexualidade nas escolas e que possui projetos como o Escola Sem Partido.
Apesar de terem surgido no mesmo período histórico, os termos homofobia e lesbofobia tiveram forças diferentes em diferentes momentos. Utilizar termos mais genéricos como homofobia para descrever a violência sofrida por outros sujeitos da comunidade LGBTQIA+, como lésbicas, travestis, transexuais e intersexos foi uma conquista imensa para o movimento que antes nem pautava questões de violência contra esse público.
Por outro lado, a não utilização da lesbofobia, no caso, corrobora com o apagamento das vivências lésbicas, das especificidades das violências e prejudica a busca por medidas de segurança e saúde públicas para esse público.
Além disso, apesar do sistema de educação ser o principal responsável para o trabalho desses temas, também é papel social das mídias a utilização correta da palavra lesbofobia, lesbocídio e afins, pois as violências contra cada grupo da sigla acontecem de formas distintas, específicas e a influência dos espaços midiáticos pode interferir positivamente para a compreensão dessas violências. A violência que um homem gay sofre não é a mesma que uma travesti, ou uma lésbica sofrem, por exemplo, isso precisa ser difundido.
Por que ainda não há informações oficiais dos crimes motivados por lesbofobia especificamente?
Antes de pensar o porquê da inexistência de dados sobre crimes lesbofóbicos, precisamos compreender o momento político pelo qual estamos passando. A perda de direitos sociais é gritante para a comunidade LGBTQIA+ no Rio de Janeiro.
Por exemplo, o Rio sem Homofobia está praticamente de portas fechadas e isso é um projeto político de apagamento e sufocamento de grupos marginalizados, nós não conseguimos, sequer, aprovar na câmara dos vereadores do Rio um projeto para fixar dia 29 de agosto como dia da visibilidade lésbica no município. Não foi um pedido de feriado, algo que exigiria grandes movimentações, era apenas um dia para lembrar que lésbicas existem e nem isso conseguimos.
A máquina pública é deficiente e atrasada no trato com os LGBTQIA+. E quando um serviço público não funciona (ou não quer funcionar), geralmente, a demanda é passada para alguma organização não governamental, coletivo ou instituição para que algo seja feito.
Como já disse anteriormente, falar de lésbicas é algo que na maioria das vezes gera um desconforto social, quando se fala de lésbicas ninguém lembra da origem do nome, da Ilha de Lesbos, não é? A sociedade tende a deixar de lado aquilo que gera desconforto, e se lésbicas geram desconforto, deixemos de lado então.
O Estado negligencia os LGBTQIA+ e, nesse meio, negligência as lésbicas. Temos tido alguns avanços em pesquisas sobre violências para a comunidade de uma forma geral e espero que pautar a violência contra lésbicas também faça parte desses avanços e represente mudanças reais, que façam com que o Estado assuma para si a responsabilidade por essa negligência e financie o desenvolvimento de políticas de atenção às lésbicas.
Quais são os tipos mais comuns de violência contra lésbicas no país?
Segundo o dossiê “Saúde das Mulheres Lésbicas: promoção da equidade e da integralidade” (2006), as violências mais reportadas são agressões por parte de familiares e amigos. Em sua maioria, são agressões verbais, xingamentos, silenciamentos, etc.
Isso vai de encontro com a máxima lesbofóbica amplamente propagada de que “lésbicas sofrem menos que homens gays”. Como informa o documento, mulheres lésbicas não sofrem menos que homens gays, mas sofrem de formas diferentes e com um viés que invisibiliza as violências sofridas.
Serem silenciadas, xingadas ou até mesmo agredidas por familiares e amigos são violações que ocorrem no âmbito privado e que dificilmente vão para a esfera pública, seja pela tentativa da vítima em manter o vínculo com um agressor que costuma ser um parente, seja pela submissão própria da condição feminina que faz com que a vítima seja sempre estimulada a não falar de suas violências. Temos que lembrar que lésbicas também são mulheres e que sofrem as questões estruturais que envolvem o ser mulher.
Além das violências no âmbito privado, existem as violências institucionais cuja dimensão é quase impossível mensurar. Uma lésbica que não tem acesso à saúde sexual adequada e que atenda às especificidades da sua sexualidade pode sofrer consequências graves disso.
É comum lésbicas não fazerem acompanhamentos médicos e desenvolverem doenças que prejudicam sua qualidade de vida e/ou que podem levar ao óbito. Além disso, quando ela busca um sistema de saúde e sofre preconceito por ser lésbica.
A lésbica tem, por exemplo, dificuldade de acessar o mercado de trabalho mais qualificado por ser uma lésbica pouco feminina e que não atende aos estereótipos de feminilidade esperados. Não há como mensurar o quanto uma lésbica sofre institucionalmente por ser lésbica porque não há como separar as violências e categorizá-las, ser lésbica permeia todas as relações que a pessoa estabelece em sua vida.
E existem, ainda, inúmeros casos de violências físicas e sexuais como agressões, tentativas de assassinato e estupros corretivos que fazem com que a vida da lésbica seja direcionada a busca por espaços seguros de convivência na tentativa zelar por sua segurança.
Para denunciar algum caso pelo formulário, como as mulheres devem proceder?
O formulário ainda é um teste. O projeto não possui financiamento para hospedar o documento em uma plataforma especializada ou algo do tipo. No entanto, este formulário do Google ainda é o melhor que encontrei para realizar a pesquisa.
A ideia é levantar os casos de violências sofridas por lésbicas para entender com mais detalhes as condições em que se dão essas violências. O preenchimento pode ser realizado pela vítima, a lésbica, ou por terceiros, e a vítima não precisa se identificar ou ser identificada.
As perguntas foram criadas com base no formulário do Ministério da Saúde (a Ficha de Notificação/Investigação Individual de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências Interpessoais) e foram adaptadas para questões lésbicas.
Foram incluídas algumas outras questões que são pertinentes para compreender a situação de violência contra a lésbica em questão. Foram feitas perguntas sobre a vítima, sobre o agressor e sobre as circunstâncias da agressão a fim de tentarmos traçar um mapa da violência contra as lésbicas no Brasil.
O formulário (veja aqui) possui 50 perguntas, o preenchimento é totalmente on-line e a plataforma permite que seja feito pelo computador, ou até mesmo celulares e tablets. O questionário ficou extenso, mas a ideia é permitir uma análise mais detalhada das agressões, o que poderá ser utilizado como base para ações de saúde e segurança.
É importante lembrar que o registro da denúncia no formulário não substitui o registro do um boletim de ocorrência, pois o projeto não encaminha as denúncias coletadas para os órgãos públicos.
Ainda que seja de conhecimento todas a dificuldades que mulheres possuem de realizar denúncias contra seus agressores em Delegacias Civis e em Delegacias de Atendimento à Mulher, incentivamos que esse procedimento seja feito (se possível), pois há a necessidade da criação de dados sobre essas violações e, infelizmente, o Estado só passa a tomar providências quando os números falam mais alto.
Heloisa Aun