O caso da travesti Dandara dos Santos, espancada, chutada, golpeada com pedaços de pau e morta com um tiro no dia 15 de fevereiro de 2017, em Fortaleza, no Ceará, ficou marcado como um dos mais emblemáticos da violência contra LGBTs no Brasil principalmente depois de vídeos em que ela aparecia ensanguentada, em um carrinho de mão, serem compartilhados no Facebook e correrem o país. Um ano depois do crime, seis acusados foram condenados a penas que variavam entre 14 e 21 anos de prisão. A transfobia foi citada como fator para o aumento das sentenças.
(Universa, 25/09/2019 – acesse no site de origem)
Apesar da enorme repercussão, o caso Dandara não foi registrado como violência contra LGBTs no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, referente aos anos de 2017 e 2018 e divulgado no último dia 10 de setembro. Esta edição do levantamento compilou dados referentes à população LGBT pela primeira vez. No documento, não há um caso sequer registrado no estado de Ceará. Outros 15 estados, além do Distrito Federal, também não têm registros de assassinatos de LGBTs, segundo o documento.
Ou seja: apenas dez estados fazem esses registros, e a maioria deles com dados que ficam muito aquém do que é compilado por ONGs que defendem causas LGBTs. “Esperamos que, no ano que vem, isso mude. Pedir esses dados também é um jeito de fazer pressão”, diz Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, órgão responsável pelo levantamento.
No Ceará, pelo menos, essa mudança parece já ter começado. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do estado e questionou a falta de dados. Em nota, a secretaria afirmou que foi feita uma alteração nos registros de ocorrências policiais em junho deste ano. Os campos “orientação sexual” e “identidade de gênero” foram adicionados aos que devem ser preenchidos nos procedimentos policiais. “A partir do cadastramento dessas informações, será possível gerar dados criminais sobre o público LGBT no Ceará”, diz a nota. A secretaria não se pronunciou sobre a falta de registro do caso Dandara.
Comparação por estado
Universa procurou outros 16 estados questionando não apenas a falta de números como também as diferenças significativas entre os dados dos órgãos oficiais, reunidos no anuário, e os divulgados por relatórios de duas ONGs tidas como referência no tema. O Grupo Gay da Bahia compila, há 40 anos, a partir de notícias de jornais, a quantidade de mortes motivadas por homofobia e transfobia, assim como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que também baseia seu relatório de mortes de trans e travestis no noticiário. Os números, ou a falta deles, se referem aos anos de 2017 e 2018. Veja a comparação:
Dados oficiais de homicídios de LGBTs X dados de ONGs de proteção aos LGBTs
*Estados não divulgaram dados oficiais
Sete estados responderam os questionamentos da reportagem. Paraná e Pará informaram que a especificação da motivação do crime acontece durante a investigação criminal, e não no momento do registro de ocorrência. Por isso, não puderam contribuir com o anuário. Em Minas Gerais, a motivação é incluída no momento do registro do boletim de ocorrência, mas, por questões técnicas, essas informações não podem ser filtradas pelo sistema. A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública destaca que a ferramenta de extração de dados “vai passar por manutenção evolutiva” para que haja possibilidade de compilação e divulgação dessas informações.
A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas afirmou apenas que “os indícios preliminares de motivação do crime são expressos já no boletim de ocorrência” e enviou um quadro em que aparecem os crimes de homofobia registrados pelo estado em 2018: zero.
O Rio Grande do Sul enviou dados ao anuário que diferem dos das ONGs. A diretora do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV), Shana Luft, afirma que o sistema de registro de ocorrências do estado não permite que os boletins de ocorrência sejam separados de acordo com a motivação do crime, apenas por sua natureza (homicídio, latrocínio etc). Afirmou, ainda, que até o primeiro semestre do ano que vem deve haver uma mudança na maneira como os registros são feitos para que se inclua a discriminação homofóbica nesses dados.
Em São Paulo, a diferença entre os dados oficiais e os registrados pelas ONGs também é grande. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que “não comenta pesquisas cuja metodologia desconhece” e que “desde novembro de 2015, é possível colocar o nome social e a indicação de motivação da infração de casos de homofobia e transfobia nos registros de ocorrência”. Diz ainda que “todas as circunstâncias relativas aos fatos descritos nos boletins de ocorrência são apuradas ao longo das investigações e, ao término do trabalho da polícia judiciária, relatadas à Justiça conforme determina a Lei”.
Por que dados são importantes?
Professor da FGV Direito (escola da Fundação Getúlio Vargas), Thiago Amparo analisou os dados do anuário e diz que a existência de um campo específico nos registros de ocorrência para abarcar a descrição de um crime como homofóbico ou transfóbico é urgente.
“É fundamental ter esses dados para que se entenda o fenômeno como específico, com uma dinâmica própria. Mesmo que seja decorrente de um roubo, o crime não deveria ser [registrado como] um caso geral de latrocínio, pois há requintes de crueldade, é feito com ódio”, explica Amparo. “Só com informações disponíveis é possível pensar políticas públicas para proteger essa população.”
Para o fundador do Grupo Gay da Bahia e professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia, Luiz Mott, a falta de números oficiais reflete a “homotransfobia governamental”. “O governo não se preocupa em documentar essas ocorrências porque não se preocupa em evitar essa tragédia que faz do Brasil o campeão mundial em mortes de LGBTs no mundo”, diz. “Dados oficiais deveriam ser garantias de que as fontes de pesquisa foram sistematicamente exploradas e que os métodos de investigação estatísticos foram seguidos à risca. São mais fidedignos que levantamentos baseados em notícias de jornal.”
A Bahia, coincidentemente, é o estado que apresentou os números oficiais mais próximos aos do relatório da entidade: foram 32 casos em 2018, segundo o governo, e 35 casos, segundo o Grupo Gay da Bahia.
Por Camila Brandalise