Os direitos dos transgêneros são direitos humanos. Não existe feminismo sem vozes trans.
(HuffPost Brasil, 11/12/2018 – acesse no site de origem)
Uma data como o Dia da Memória Transgênero traz a possibilidade de homenagear a vida das pessoas que morreram vítimas da violência em todo o mundo. Em 2017, só nos Estados Unidos, foram registradas pelo menos 29 mortes de transgêneros em decorrência da violência – este, o maior número já visto no país. Essa violência fatal afeta de modo desproporcional as mulheres trans não-brancas.
As pessoas trans têm probabilidade maior de serem sem-teto, estar desempregadas ou não ter plano de saúde. Muitas delas vivem nas encruzilhadas complexas do racismo, homofobia, transfobia, sexismo e preconceito de classe. Hoje, quando refletimos sobre as perdas e a violência pesada enfrentadas pela comunidade trans, é crucial que nós, como aliados, analisemos nosso papel no movimento pela igualdade e a justiça para as pessoas trans.
Um dos principais espaços onde as comunidades trans têm ficado historicamente invisíveis é dentro do feminismo mainstream. Apesar de serem as mais vulneráveis em uma sociedade que impõe o ideal binário, as mulheres e as comunidades transgênero são em grande medida excluídas das discussões culturais importantes sobre opressão de gênero, os males do patriarcado e como lutar pela igualdade de gênero.
Tome-se o caso, por exemplo, da Marcha das Mulheres, da qual os chamados “pussy hats” cor-de-rosa viraram praticamente um símbolo (são gorros de gatinho, ou “pussy”, que significa “gatinho” ou “xoxota”). Várias das líderes da Marcha das Mulheres foram ativistas não brancas, mas a exclusão das mulheres trans e a utilização das “pussy hats”, que equacionam um lugar no movimento pela igualdade de gêneros com o fato de a pessoa ter vagina, foi repudiado por muitas pessoas trans e não binárias. As comunidades trans têm muito a perder sob a administração Trump, fato que torna ainda mais problemática essa desatenção gritante.
Desde que Donald Trump chegou ao poder, o governo americano já tomou várias medidas para privar pessoas LGBTQ de seus direitos previamente conquistados, desde recusar-se a proteger estudantes trans até negar vistos de entrada aos parceiros homossexuais de diplomatas, passando por proibir pessoas trans de servir nas forças armadas e pelo fechamento do conselho de assessoria para questões ligadas à Aids e ao HIV. Recentemente, o New York Times informou que a administração Trump pretende excluir pessoas transgênero e não binárias de sua definição legal de gênero. Se a medida for implementada, terá efeitos devastadores sobre o acesso da comunidade trans à saúde, moradia, educação e direitos civis.
Mas o processo de invisibilizar as experiências e identidades trans existiu muito antes de Trump chegar ao poder. Quando analisamos a discussão nacional sobre igualdade de gênero e feminismo, desde o movimento #MeToo até a disparidade salarial de gênero, vemos que as mulheres trans e as comunidades trans continuam a ser marginalizadas, em favor da atenção prestada às experiências das mulheres brancas cisgênero.
Um feminismo que não leva em conta os aspectos multifacetados e em constante evolução das mulheres ou da opressão de gênero não é um feminismo libertador.
A ausência de vozes trans e não binárias no movimento Me Too é especialmente prejudicial quando se considera a violência sexual que essas comunidades sofrem. Mais de uma em cada três mulheres trans e um em cada dois homens trans já sofreram agressão sexual, e a incidência de agressão sexual contra pessoas não binárias é ainda maior. As pessoas trans que fazem trabalho sexual têm probabilidade maior de tornar-se vítimas de violência, e os sobreviventes trans enfrentam uma barreira de discriminação e estigmatização quando procuram atendimento depois de sofrer traumas sexuais.
Quando escreve sobre a ampliação da discussão sobre violência sexual, Raquel Willis explica: “Já senti muitas vezes que não podia falar sobre minha experiência de assédio e agressão sexual, porque já testemunhei as dificuldades enfrentadas até mesmo por mulheres cisgêneros quando elas denunciam essas agressões. O fato de eu ser trans, queer e negra torna minhas denúncias menos dignas de crédito em uma sociedade que me enxerga como essencialmente uma pessoa transviada.”
Quando falamos de opressão, deveríamos focalizar as experiências das pessoas que correm risco maior de ser orpimidas. O Me Too tornou-se um momento importante de denúncia de mulheres cisgênero e do reconhecimento de suas experiências com sexo, consentimento e poder. Mas, em seu estado atual, o movimento não possui as nuances necessárias para explorar o patriarcado como sistema complexo que afeta todas as pessoas e que continua a defender ideias binárias de que a violência sexual só acontece com certo tipo de pessoa.
Quando falamos da exclusão dos trans no feminismo, é crucial reconhecer as feministas radicais trans-excludentes (TERFs), um subgrupo de pessoas para quem as necessidades das mulheres cisgênero não se alinham com as das mulheres e comunidades trans e para quem estas últimas não têm lugar no movimento feminista atual. A ideologia TERF tem sua origem no essencialismo biológico e não difere muito da visão de muitos grupos de direita que defendem os chamados “valores familiares” e fazem questão de retratar as pessoas trans como sendo perigosas ou transviadas.
As TERFs são criticadas há muito tempo pelas feministas intersseccionais e as organizações LGBTQ por sua alegação transfóbica de que representam “mulheres de verdade”. Mas a exclusão dos trans dentro do feminismo muitas vezes ocorre de maneiras mais insidiosas, embora nem por isso menos prejudiciais à formação de um movimento feminista inclusivo e verdadeiramente feminista.
Os direitos dos transgêneros são direitos humanos. …Não existe feminismo sem vozes trans.
Graças ao ativismo acirrado das mulheres não brancas, das mulheres de classe trabalhadora e das mulheres com deficiência física, todas as quais exigiram que o feminismo mainstream reconhecesse suas experiências e necessidades políticas, o discurso feminista de hoje está se sintonizando com as experiências de uma grande gama de identidades. Ativistas e líderes feministas como bell hooks, Shirley Chisholm, Dolores Huerta e Marsha P. Johnson, além das atuais Laverne Cox, Mia Mingus, Roxane Gay e Loretta Ross (e a lista continua), deixaram marcas indeléveis sobre a discussão cultural sobre o que e para quem é o feminismo.
Embora os movimentos tenham se tornado mais inclusivos e interseccionais ao longo do tempo, ainda temos um longo caminho a percorrer para que nossos movimentos feministas destacados sejam verdadeiramente revolucionários e para todas. Como escreve Meredith Talusan, falando sobre a exclusão das trans no feminismo, na plataforma comunitária them, “mesmo entre as mulheres cisgênero que não acreditam que uma pessoa tenha que ter nascido com vagina para ser mulher, continuamos a ser vistas não como potenciais líderes dotadas de conhecimentos singulares, mas ou como vítimas ou como símbolos a serem inclúidos, desde que nossas opiniões não divirjam demais das da maioria”.
O processo de tokenização das pessoas trans ocorre de maneiras diferentes, desde as grandes organizações de mulheres que podem citar ativistas trans no Dia Internacional da Mulher mas, ao mesmo tempo, não têm lideranças trans internas nem iniciativas seletivas para apoiar as mulheres trans no longo prazo, até a exploração por Hollywood de narrativas trans, ao mesmo tempo em que atores, roteiristas e produtores trans são colocados de escanteio.
As pessoas trans vão continuar a existir, não importa qual seja a definição de gênero seguida pelo governo, e as pessoas trans não podem ser deletadas. Os direitos dos trans são direitos humanos. Como feministas cisgênero, precisamos reconhecer como deixamos de apoiar nossas irmãs trans e precisamos usar os privilégios que desfrutamos neste momento para apoiar nossas comunidades trans, hoje mais que nunca.
Somos todas prejudicadas pelo patriarcado, pela opressão de gênero e pelos conceitos restritos de gênero, sexualidade, poder e valor. Nossas lutas estão interligadas; nosso movimento também precisa sê-lo. Na prática, isso quer dizer que as feministas não precisamos apenas criar espaço para mulheres e comunidades trans em nosso movimento, mas também apoiar, cultivar e honrar suas lideranças.
Precisamos combater a transfobia onde quer que a encontremos. Precisamos cobrar criticamente nossos privilégios cisgêneros. Precisamos amplificar as vozes e os movimentos trans. Onde quer que conquistemos direitos, visibilidade ou empoderamento, precisamos carregar nossas comunidades transgênero juntas.
Não existe feminismo sem vozes trans. Dizem que se você não tem um lugar à mesa, você faz parte do cardápio. Não podemos mais ficar paradas, sem fazer nada, enquanto membros de nossa comunidade e nossas aliadas são devoradas.