Dados foram divulgados na segunda-feira pela recém-lançada plataforma EVA, do Instituto Igarapé; aumento das ocorrências foi de 297% para brancas e 409% para negras
(O Globo, 25/11/2019 – acesse no site de origem)
RIO — Carolina (nome fictício), hoje com 40 anos, ficou casada por mais de uma década com um homem que, da porta para fora, parecia acima de qualquer suspeita. Dentro de casa, proibiu a mulher de trabalhar e de estudar e a afastou dos amigos. Quando ela insistiu em continuar a carreira, começaram os insultos.
Carolina fez exame de corpo de delito e conseguiu medida protetiva, mas ainda vive sob ameaças.
— Fiquei marcada, dolorida, mas o pior foi o emocional. Eu já vivia agressões psicológicas há dois anos. Era enlouquecedor, um terror constante.
A dor de Carolina é um exemplo da violência praticada diariamente contra a mulher — e, na maior parte das vezes, por alguém próximo à vítima.
Para registrar esse e outros tipos de agressão e contribuir para a implementação de políticas públicas de combate ao crime contra a mulher, foi lançada ontem, Dia Internacional para Eliminação da Violência contra Mulheres , a plataforma EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas), do Instituto Igarapé .
De acordo com os dados compilados pelo think tank, ao menos 1,23 milhão de mulheres foram atendidas no sistema de saúde brasileiro vítimas de violência entre 2010 e 2017. E o agressor é, em 90% dos casos, uma pessoa próxima da vítima — 36% das vezes, o próprio parceiro.
Nesse mesmo período, as notificações de violência contra mulheres brancas aumentaram 297%. No caso das mulheres negras, o cenário é ainda mais grave: 409%.
Agressões a mulheres, Segundo a plataforma EVA
Não é possível afirmar se o crescimento reflete com precisão o aumento da violência ou se também é resultado da maior visibilidade dada ao tema.
— Houve melhora nas notificações. O que tem acontecido é um despertar para essas questões. As pessoas estão desnaturalizando violências que antigamente se consideravam normais — afirma a pesquisadora sênior do Instituto Igarapé, Renata Avelar Gianinni.
O perfil dos crimes muda quando se faz o recorte por etnia. No Rio de Janeiro, 64% das vítimas de feminicídio eram negras, assim como 62% das vítimas de homicídios dolosos, 58% das vítimas de tentativas de homicídio, 57% de quem sofreu tentativa de estupro e 56% das que foram estupradas. Já as brancas foram 55% das vítimas de difamação, 54% das vítimas de ato obsceno, 54% de quem sofreu constrangimento ilegal e 53% das vítimas de assédio sexual.
A pesquisadora Deise Benedito, especialista em gênero e relações raciais, destaca que, pelo “processo histórico com que se construiu o Brasil, não podemos deixar de levar em consideração a violência contra as mulheres indígenas, vítimas de inúmeras violações”. E, hoje, o fato de a maioria das vítimas ser de mulheres negras, “pobres, responsáveis pela manutenção da casa e dos filhos”.
— Para essas mulheres, tudo é negado. O corpo das mulheres negras secularmente foi algo a ser violado, desprovido de qualquer respeito. — afirma Benedito. — Os dados oficiais apontam para um problema de saúde pública gravíssimo, e as informações e a divulgação desses dados são de fundamental importância para que providências sérias sejam tomadas.
As mulheres são a maioria das vítimas de todos os tipos de violência: física (73%), patrimonial (78%), psicológica (83%) e sexual (88%). Em 2017, a física foi a principal forma de violência registrada no sistema de saúde contra mulheres, com 59% das ocorrências, seguida da psicológica (26%), sexual (14%) e patrimonial (1%).
Na questão da violência sexual, um dado que chama a atenção é o de que, quando as vítimas são mulheres adultas, cerca de metade dos crimes é cometida por pessoas conhecidas delas. Em meninas de até 14 anos, que são as maiores vítimas desse tipo de crime (56%), os perpetuadores são, em 65% dos casos, pessoas com quem elas tinham alguma ligação; 30% das vezes, um parente.
A plataforma EVA é um banco de dados que reúne informações sobre violência contra as mulheres não só no Brasil, mas também no México e na Colômbia. Juntos, os três países concentram 65% dos assassinatos de mulheres em toda a América Latina, considerados os números absolutos. No Brasil ocorrem 37% dos casos de feminicídio . A intenção do instituto é expandir sua atuação para todos os países da região.
Deserto de dados
O projeto esbarra, porém, no que as pesquisadoras chamam de “deserto de dados”. Além do já conhecido problema da subnotificação dos casos de violência, ainda falta uma base equivalente com dados oficiais de todos os estados.
Pelo menos dois estados brasileiros não disponibilizaram nenhuma informação, seja das notificações de Saúde ou das ocorrências da Segurança Pública, para a plataforma: Piauí e Goiás. Já o Amazonas enviou dados apenas da capital, Manaus. Os dados sobre etnia, por exemplo, foram liberados por apenas quatro estados.
— O principal achado da plataforma é a falta de dados. São muitas lacunas. E sabemos que é muito difícil fazer política pública sem dados.
A promotora de Justiça especialista em direitos das mulheres Gabriela Manssur afirma que ainda há uma enorme subnotificação. Segundo ela, mulheres de classe média e média alta em situações de violência se calam por medo, frustração e falta de apoio. Já as mulheres negras não têm oportunidade de inclusão e acesso ao sistema de Justiça como as brancas. Além disso, “há uma descrença das mulheres no sistema de Justiça”.
Apesar disso, Gabriela Manssur afirma que houve queda na subnotificação, de 65% na época da implantação da Lei Maria da Penha para em torno de 40% atualmente.
— O Brasil é um país que culturalmente não se preocupa com dados estatísticos. Eu mesma não me preocupava e, quando pleiteava políticas públicas, não tinha como demonstrar a necessidade delas, foi a partir daí que comecei a fazer micropesquisas para mostrar a realidade e pleitear as políticas necessárias — afirma a promotora. — A falta de dados atrapalha, mas o que me preocupa mais é o aumento da violência contra a mulher. Não podemos transformar a vida das mulheres em números. Precisamos transformar a possibilidade de elas viverem num compromisso de todo o sistema de Justiça e da sociedade.
Por Constança Tatsch