Qual o impacto dos discursos machistas de políticos no combate à violência doméstica

09 de dezembro, 2019

Especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil afirmam que apesar de não ser possível apontar uma relação direta entre retórica de representantes do Executivo e aumento da violência, é preciso atenção às políticas públicas.

(HuffPost, 09/12/2019 – acesse no site de origem)

“Talvez nós, homens, nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade. Por conta disso, parte de nós recorre, infelizmente, à violência física ou moral para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”, disse o ministro da Justiça, Sergio Moro, em solenidade dos 13 anos da Lei Maria da Penha, em 7 de agosto.

Em 6 de julho, em meio à crise ambiental envolvendo queimadas e desmatamento na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro disse que “o Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer”. Foi também nesse contexto que o ex-deputado comentou a aparência da primeira-dama francesa, Brigitte Macron, comentário reforçado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Ao longo de 2019, Bolsonaro também saiu em defesa do jogador de futebol Neymar quando ele foi acusado de estupro e disse a jornalistas que “todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres” ao comentar agenda com o príncipe da Arábia Saudita Mohammed bin Salman, suspeito de ordenar o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.

Após falar que o Brasil não poderia ser um país do turismo gay, em abril, o presidente Bolsonaro também disse que “quem quiser vir aqui [no Brasil] fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”.

As declarações semelhantes também encontram espaço no Legislativo. No auge da crise do PSL, o deputado Delegado Waldir (PSL-GO) afirmou “nós somos que nem mulher traída. Apanha, mas volta para o seu aconchego”.

Elas [declarações] interferem não só no senso comum como criam uma resistência às políticas destinadas às mulheres.

Professora de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Maria Bandeira, uma das responsáveis pela elaboração da Lei do Feminicídio e integrante do consórcio que criou a Lei Maria da Penha

A alguns metros da Esplanada dos Ministérios, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por sua vez, defendeu que não se divulgassem dados de feminicídio na região. A unidade da Federação passa por uma alta nesse tipo de crime. Em 2019, foram registrados 31 casos na capital, de acordo com o G1, recorde desde 2015, ano em que a Lei do Feminicídio foi sancionada.

O cenário de violência contra mulher no Brasil é de superlativos. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos.

A taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%. Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.

Já as estimativas de casos de estupro no Brasil variam entre 300 mil a 500 mil casos por ano, devido à subnotificação. Em 2018, segundo dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, País atingiu o recorde de registros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 por dia ― maior número deste tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007.

Na avaliação de especialistas em violência doméstica e contra a mulher ouvidas pelo HuffPost Brasil, devido ao amplo alcance, discursos como estas de representantes do Executivo e do Legislativo são, têm um impacto simbólico que dificulta a concretização de mudanças necessárias na sociedade brasileira para combater esse tipo de violação.

“Essas declarações são super sexistas porque estão vinculadas a uma sociedade profundamente patriarcal e racista e elas interferem não só no senso comum como criam uma resistência às políticas destinadas às mulheres. Cria uma resistência ao combate à violência contra as mulheres. Cria uma resistência à credibilidade das mulheres, às denúncias quando elas vão numa delegacia”, afirma a professora de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Maria Bandeira, uma das responsáveis pela elaboração da Lei do Feminicídio e integrante do consórcio que criou a Lei Maria da Penha.

A especialista também critica a minimização desse tipo de conduta. “O uso desse discurso, mesmo que do ponto de vista da brincadeiras, de querer ser lúdico, é um desserviço às mulheres brasileiras”, aponta.

É importante a gente perceber isso como um sintoma e não necessariamente uma causa [da violência]. Essas pessoas representam uma mentalidade muito comum e poderosa.

Beatriz Accioly, antropóloga e pesquisadora especializada em estudos de gênero e violência contra mulheres da USP (Universidade de São Paulo

Para Beatriz Accioly, antropóloga e pesquisadora especializada em estudos de gênero e violência contra mulheres da USP (Universidade de São Paulo), as falas reproduzem o pensamento de grande parte da população e indicam a necessidade de “continuar trabalhando pela criação e efetivação de políticas públicas e pela mudança de mentalidade, do reconhecimento de quão inaceitáveis são essas circunstâncias”.

″É importante a gente perceber isso como um sintoma e não necessariamente uma causa [da violência]. Essas pessoas representam uma mentalidade muito comum e poderosa”, diz.

A pesquisadora também entende como prejudicial não haver uma separação por parte desses políticos do uso pessoal para a representação institucional.

“O comportamento dessas lideranças nas redes sociais é um exemplo disso, de não separar o que é opinião pessoal numa rede pessoal privada para conversar com pessoas que você conhece de ser um chefe de Estado e lidar com redes sociais como alguém investido num cargo público para dizer opiniões e não argumentos.”

Foi justamente nas redes sociais que Bolsonaro falou sobre Brigitte Macron. Em agosto, um seguidor fez um comentário em uma publicação de Bolsonaro utilizando uma montagem em que Michelle Bolsonaro e Brigitte Macron são comparadas: “Entende agora porque Macron persegue Bolsonaro?”, dizia texto da imagem.

O seguidor postou a imagem com a frase nos comentários escrevendo ”é inveja presidente do Macron, pode crê”. O ex-deputado respondeu, dizendo “não humilha cara. Kkkkkkk”, dando a entender que valida a sugestão de que a beleza de Michelle seria o motivo pelo qual o Macron o “perseguiria” durante a cúpula do G7, evento que acontecia à época.

Mesmo após o início da repercussão negativa do episódio, Bolsonaro declarou que não iria se desculpar com a primeira-dama da França pois não havia a ofendido. Mas logo depois o comentário foi deletado das redes sociais.

Heloisa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pondera que discursos como este não são uma surpresa e que o efeitos de declarações como estas são muito complexos na prática.

Bolsonaro se elegeu apesar de já ter um discurso que poderia ser classificado como misógino, ou seja, de ódio às mulheres, há muito tempo.

Heloisa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

“Bolsonaro se elegeu apesar de já ter um discurso que poderia ser classificado como misógino, ou seja, de ódio às mulheres, há muito tempo”, diz, ao citar episódios anteriores do mandatário como quando disse que a deputada Maria do Rosário não “merecia ser estuprada” ou quando disse que teve quatro filhos e “deu uma fraquejada” na quinta e nasceu uma menina. “Então cabe lembrar que ele expressa uma misoginia, ou um machismo, que é socialmente aceita.”

A antropóloga afirma que, com a chegada de Bolsonaro à presidência, estes discursos ganham uma força simbólica. ”É muito grave que o governante seja orgulhoso de sua ignorância e de sua brutalidade, e o que é certo é que suas políticas podem ter efeitos bem piores – como por exemplo, a liberação de posse de armas certamente deve aumentar os casos de feminicídio, assim como outros tipos de violência”, aponta.

Após Bolsonaro editar, neste ano, oito decretos que ampliam o porte e a posse de armas de fogo, Thaylize Rodrigues Orsi, representante do Ministério da Justiça afirmou em audiência pública na Comissão da Mulher na Câmara realizada em outubro deste ano, que não há evidências de que a liberação de armas aumente a violência contra mulheres.

Porém, o Mapa da Violência 2016 mostra que o Estatuto do Desarmamento foi responsável por poupar 160.036 vidas desde 2003. Entre 1993 e 2003 os homicídios com arma de fogo cresceram 7,8% ao ano, até atingir 36.115 mortes. Seguindo esta progressão, em 2012, o número deveria ser de 71.118 vítimas fatais de disparos, mas foram registradas 40.077 mortes.

“O maior problema é que legitimar frases misóginas reforça a brutal desigualdade de gênero. Não conseguimos saber se isso ‘impacta’ diretamente na violência contra mulher, pois é bem difícil medir aumento de violência e quais as suas causas – a violência sempre tem muitas causas”, lembra a antropóloga, ao citar que a violência institucional têm se agravado no governo.

“Embora caiba lembrar que ela não é uma novidade, mas infelizmente um padrão que se relaciona a desigualdade social e de direitos”, aponta.

No entendimento das especialistas, apesar de não ser possível apontar uma relação direta entre as falas e mudanças nas políticas públicas, é preciso atenção às ações do Executivo. ”O que me parece que mais impacta na desigualdade e violência de gênero – contra mulheres, mas também contra pessoas LGBT – é também o desmonte de políticas sociais e preventivas. A Secretaria Especial para Mulheres perdeu seu papel, ao virar parte de uma suposta política de Direitos Humanos que, na verdade, não defende os direitos humanos”, aponta Heloisa Buarque de Almeida.

Rosane Borges, doutora em Comunicação e Linguagem pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e estudiosa sobre questões raciais, concorda que, quando gestores públicos têm esse tipo de postura, eles “sancionam pelo discurso práticas violentas já existentes na sociedade”.

“A reafirmação dessas visões, que são preconceituosas e estereotipadas, funcionam como se fossem pura nitroglicerina”, diz Borges. “E as ações violentas precisam ter alguma rubrica institucional discursiva. É por isso que a gente tem que tomar muito cuidado com o que a gente diz sobre o outro.”

Para a professora da USP, a imprensa tem um fator fundamental quando divulga estas falas não só ao noticiar, mas ao localizar o que ela significa por meio de dados e contexto.

“Embora o que ela [imprensa] tenha que divulgar o que eles dizem, é preciso também que forme a opinião pública. Então, é fundamental que ela traga outras vozes, demonstre por meio de indicadores e de números como o feminicídio é um derivado também de práticas discursivas, porque contrabalancear esses discursos institucionais é um papel fundamental da imprensa”, aponta.

Por Andréa Martinelli e Marcella Fernandes

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