Mulheres venezuelanas que migram para o Brasil vivem rotina de medo e violência dos dois lados da fronteira, por Tamara Jurberg

15 de agosto, 2025 The Conversation Por Tamara Jurberg

Maria (nome fictício) chegou ao Brasil sozinha com sua filha de nove anos, depois de uma longa travessia de três dias por las trochas, como são chamados os caminhos improvisados, informais ou não oficiais usados pelos imigrantes venezuelanos que cruzam a fronteira entre os dois países, no norte de Roraima. Ela recorreu a essa alternativa perigosa por causa da falta de gasolina e do fechamento da fronteira regular. Fugiu da precariedade econômica de seu país, e sonhava com estudos para filha, segurança, dignidade e a chance de reconstruir sua vida no Brasil. Mas, ao chegar em Boa Vista, teve que enfrentar inúmeros desafios. Que incluíam o idioma diferente, a falta de reconhecimento do seu diploma, as dificuldades para conseguir um emprego e a cultura machista da região. Conseguiu um trabalho como diarista, na informalidade, sem proteção social. E aconteceu o pior: foi violentada pelo homem que a contratou, ficou grávida e gerou mais uma filha, fruto da violência invisível e impune que sofreu.

Fluxo migratório cada vez maior

A história de Maria, embora única, se repete com muitas outras mulheres venezuelanas que chegam ao Brasil pela fronteira com Roraima. Desde o início da crise migratória, por volta de 2015 e 2016, o país recebeu mais de 680 mil venezuelanos, segundo dados da Plataforma Response for Venezuelans (R4V), com uma média que já chegou a mais de 500 pessoas cruzando a fronteira por dia, em 2025. O fluxo cada vez maior é gerido pela chamada Operação Acolhida, um esforço interinstitucional do governo federal, com apoio da ONU e de organizações da sociedade civil, que organiza o acolhimento emergencial e promove o chamado processo de interiorização, que é a realocação voluntária de refugiados e migrantes em outras cidades brasileiras, com mais capacidade de absorção de novos moradores do que Boa Vista.

Ainda assim, apesar da existência de um arcabouço legal protetivo e de políticas públicas que garantem o acesso à saúde, educação e trabalho formal, a realidade no terreno é mais complexa. Muitos dos abrigos de acolhimento em Roraima operam em condições de superlotação, faltam serviços especializados, especialmente para mulheres, e as estruturas institucionais ainda reproduzem desigualdades de gênero.

A interiorização, por sua vez, pode representar uma oportunidade de recomeço, mas também uma nova ruptura: mulheres são deslocadas sem redes de apoio, muitas vezes para regiões onde enfrentam racismo, xenofobia e precariedade no acesso a moradia, emprego e serviços públicos como assistência social.

Acolhida e riscos para mulheres em deslocamento forçado

Foi para entender essas dinâmicas que nós, do Programa de Doutorado em Ciências Sociais e do Comportamento da Universidade La Coruña, na Espanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, conduzimos uma pesquisa sobre os riscos e as violências vividas por mulheres venezuelanas refugiadas, solicitantes de asilo e migrantes no Brasil. Buscamos compreender não apenas as trajetórias individuais, mas os sistemas que mantêm essas mulheres em situação de vulnerabilidade, mesmo após cruzarem a fronteira.

A metodologia da pesquisa combinou técnicas qualitativas e quantitativas. Foram realizados grupos focais com mulheres venezuelanas em Roraima e em cidades de interiorização, como São Paulo e Rio de Janeiro. Fizemos entrevistas em profundidade com sobreviventes de violência de gênero e com informantes-chave, como profissionais da ONU, organizações de mulheres, casas de acolhida e assistentes sociais. Também foram analisados dados secundários de bases nacionais e internacionais, como o IBGE, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a plataforma R4V.

Padrão contínuo de violência

Os resultados revelam um padrão contínuo de agressões que começam ainda na Venezuela, com a intensificação da violência de gênero, da escassez de alimentos e da ausência de resposta estatal. Prolonga-se nas rotas de deslocamento, comumente marcadas por abusos e riscos de tráfico de pessoas, sendo os principais agressores pessoas desconhecidas (34%), grupos criminosos ou gangues (27%), parceiro ou ex-parceiro (12%), grupos armados ilegais (10%) e polícia ou militares (4%).E tudo isso se renova quando chegam no Brasil.

Para as mulheres que vivem na fronteira, uma em cada cinco já sofreu violência sexual ao menos uma vez em suas vidas, muitas de seus próprios parceiros. Além disso, acreditam estar principalmente sujeitas à violência sexual (30%), violência física (26%), socioeconômica (16%) e tráfico (12%) no Brasil. Em outras palavras, o risco não termina ao atravessar a fronteira, apenas muda de forma e endereço.

Identificamos que a Operação Acolhida e os seus abrigos, embora ofereçam proteção emergencial, falham em não considerar as necessidades específicas das mulheres. A lógica de resposta humanitária permanece centrada em uma abordagem neutra, que, por vezes, ignora fatores como gênero, idade e deficiência. A convivência forçada com homens desconhecidos, a ausência de espaços seguros e a sobrecarga com o cuidado de filhos são elementos que, longe de representar acolhimento, perpetuam o ciclo de violências. Das mulheres venezuelanas que vivem em Roraima, 43% se sentem inseguras em espaços públicos, 25% nos abrigos da Operação Acolhida, 17% em suas casas e 8% em seu trabalho.

Além disso, a pesquisa destaca a importância de adotar uma abordagem interseccional. A interseccionalidade emerge como um conceito essencial para compreender as diferentes formas de violência sofridas no contexto do deslocamento forçado. Este conceito destaca a interdependência entre diferentes eixos de opressão, como gênero, raça, etnia, orientação sexual e identidade de gênero.

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