Acabar com os abusos, editorial do jornal El País

20 de janeiro, 2018

#Metoo colocou sobre a mesa um problema grave e inadiável

(El País, 20/01/2018 – acesse no site de origem)

O movimento #Metoo tem o mérito incontestável de haver colocado sobre a mesa uma realidade intolerável: a de que, apesar do progresso nas últimas décadas, nos amplos espaços de discriminação entre homens e mulheres que ainda sobrevivem há um especialmente grave e doloroso: o do abuso e assédio sexual no local de trabalho. Nele, como ocorre na esfera privada, onde está custando erradicar o flagelo da violência machista, o abuso das posições de poder e privilégio por parte de alguns homens está favorecendo situações de humilhação e submissão inaceitáveis e impedindo o avanço da igualdade.

É um fato que, embora a legislação de todos os países avançados proíba a discriminação no trabalho com base no gênero, ela não só continua existindo, mas é totalmente visível e ocorre à vista de todos. Ao olhar as estatísticas é possível verificar que as carreiras das mulheres são mais curtas e mais fragmentadas. Mas também no dia a dia, pois além de receberem salários mais baixos e terem menos oportunidades de serem promovidas, muitas mulheres continuam experimentando e sofrendo culturas de trabalho machistas nas quais a condescendência masculina e os comentários e atitudes sexistas estão na ordem do dia.

A combinação de uma frustração há muito escondida com a raiva provocada pela revelação dos casos de assédio e abuso sexual no trabalho causou uma explosão de indignação que está sacudindo nossas sociedades. A virulência surpreendeu aqueles que pensavam que os avanços conseguidos nas últimas décadas tinham sido mais profundos e extensos do que nunca. Mas não há nenhuma contradição: se a desigualdade e o abuso sofrido pelas mulheres nos indigna é precisamente porque ele subsiste em sociedades onde não é admissível.

O movimento #Metoo foi acusado de ter desencadeado uma caça às bruxas que ameaça colocar em risco os pilares centrais de nossa sociedade, como a presunção de inocência ou o direito à livre criação artística. Inclusive, como no polêmico manifesto das mulheres francesas, está em discussão a abertura de portas a uma onda de puritanismo que poderia prejudicar as relações entre homens e mulheres, e levar a uma guerra de sexos.

Sem dúvida, toda causa está exposta a excessos. A legitimidade das reivindicações do movimento #Metoo não o isenta de críticas quanto à adequação de meios e fins ou os equilíbrios entre valores e princípios que possam entrar em contradição. Porque este é um problema crucial que deve ser resolvido de forma satisfatória, é necessário compreender bem as dificuldades e desafios que enfrentamos.

Um muito importante é o da impunidade. Como vimos, o tempo transcorrido ou o próprio contexto em que os abusos ocorreram faz com que os processos judiciais enfrentem formidáveis obstáculos legais na hora de encontrar provas. Não é algo novo: foi o que aconteceu quando começaram a aparecer os abusos sexuais na Igreja. A posição de inferioridade da vítima e a ausência de testemunhas fez com que as vítimas tivessem medo de que suas denúncias, no lugar de conseguir estabelecer a verdade e condenar o agressor, se voltariam contra elas, suas carreiras e reputações.

Sem entender esse círculo vicioso provocado pela dupla humilhação que significa acrescentar ao abuso a dificuldade de denunciá-lo com garantia de sucesso, não é possível entender o fato de que as denúncias que criaram o movimento #Metoo, em vez dos tribunais, foram apresentadas à sociedade aproveitando a difusão dos meios de comunicação e das redes sociais, tentando assim, por meio de humilhação e do repúdio social, conseguir a punição que nem os tribunais nem as empresas onde os abusos ocorreram foram capazes de oferecer em seu momento.

Por isso, o desafio é múltiplo e requer ações em vários níveis. O primeiro é o legal: devemos melhorar a capacidade do sistema jurídico de processar e punir esses delitos, acabando com a impunidade característica até agora. O segundo é o trabalhista: as empresas devem comprometer-se a fundo, tanto habilitando canais para as denúncias como revendo suas culturas na medida em que favorecem a impunidade ou criam espaço para o abuso. O terceiro é social e cultural: a discriminação, o abuso e o assédio existem nas empresas porque, infelizmente, a desigualdade entre homens e mulheres ainda existe em nossa sociedade. E as autoridades públicas têm a obrigação de velar por esse valor.

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