Encontro promovido pelo Instituto Patrícia Galvão discutiu o papel da mídia no enfrentamento à violência sexual
(OCP News, 24/04/2018 – acesse no site de origem)
A partir de uma amostra de 854 reportagens sobre estupro veiculadas pela imprensa nas cinco regiões do País, o Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos constatou que o tema ainda é pouco contextualizado e crítico. Além disso, algumas formas de abordagem do assunto provocam revitimização das mulheres. A mostra faz parte do monitoramento de quase três mil matérias que abordaram o feminicídio e a violência sexual entre outubro de 2015 e março de 2016.
A pesquisa foi divulgada pela instituição, que é responsável pela produção de conteúdo e estatísticas sobre os direitos das mulheres, durante o encontro “Diálogos com Jornalistas sobre Violência Sexual contra Mulheres”, que reuniu profissionais da imprensa e especialistas da área na segunda-feira (23), em São Paulo.
Em 97,70% das matérias analisadas, não foi possível identificar a cor ou a raça da mulher que sofreu violência e, em 81% delas, não constava a idade da vítima. Boa parte das matérias também não identificou quando (57%) e onde (31%) a violência ocorreu.
A pesquisa identificou que mais da metade das reportagens não fez menção a serviços de assistência. Os especialistas dos mesmos serviços, tanto de assistência quanto de saúde, quase não apareceram como fonte, uma vez que o tema é debatido apenas na esfera da segurança pública. Mesmo na cobertura policial, 95% das reportagens não citaram a legislação que poderia ser empregada em cada um dos crimes.
Para iniciar o debate, a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian, destacou que a violência sexual é uma das formas mais devastadoras da violência de gênero, pois, além das consequências físicas como a gravidez indesejada e as doenças sexualmente transmissíveis, a vítima pode sofrer uma série de transtornos mentais como depressão, dificuldades com a própria sexualidade e inclinação ao suicídio.
Silvia lembrou da pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016, cujo resultado denunciou que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil.
“Estamos falando de um fenômeno sociocultural que assim como o feminicídio encontra explicações nas suas raízes históricas da desigualdades entre homens e mulheres e sempre acabou contando com a omissão do Estado, da Justiça e da própria sociedade”, disse a promotora.
Diante deste cenário social, em que a cultura do estupro é naturalizada e as mulheres são culpabilizadas pela violência que sofrem, é que as especialistas no tema procuram sensibilizar os jornalistas para que as coberturas não sejam meramente superficiais e sensacionalistas, mas que aprofundem o debate e evitem expor as vítimas ao julgamento já imposto pela sociedade.
“Quando a cobertura se aproxima do sensacionalismo, desrespeita a mulher na sua condição humana e expõe a sua imagem de forma desnecessária. Em contrapartida, (a cobertura) pode oferecer uma grande contribuição quando uma boa prática é divulgada”.
Quando o debate sobre a violência sexual é bem explorado pelos veículos de comunicação pode funcionar como serviço para mulheres espectadoras ou leitoras que, muitas vezes, não se reconhecem como vítimas, já que a violência também ocorre dentro de casa. Segundo as especialistas, os parceiros, pais e padastros (no caso das crianças) são maioria entre os abusadores.
Embora as profissionais do direito reforcem a importância de levar a denúncia adiante nas esferas judiciais, para que o agressor seja responsabilizado criminalmente e seja impedido de fazer novas vítimas, a médica docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Ana Flávia D’Oliveira, lembra que o sistema de saúde pública está aí para prestar atendimento independente do registro policial.
Pela lei, reforça a especialista, o SUS deve oferecer os medicamentos que previnem doenças sexualmente transmissíveis e o aborto legal para mulheres vítimas de estupro, mesmo sem o boletim de ocorrência.
“As mulheres não vão ao hospital por vários motivos: medo da violência institucional, vergonha, e porque acreditam que precisa fazer o boletim para ser cuidada na saúde, e, na verdade, não precisa. É importante divulgar esse direito”, ressaltou Ana Flávia.
A profissional de saúde reforçou ainda que a liberdade sexual da mulher precisa ser evidenciada na cobertura jornalística para contribuir com o enfrentamento à cultura da violência sexual.
“É importante lembrar que as mulheres são sujeitos, podem escolher quem elas querem que toque nelas e quem elas não querem. Parece óbvio, mas não é. Elas podem dizer duas coisas: sim e não. Na cobertura, como leitora,
vejo a mulher como sujeito indefinido. É sempre o cara que fez com ela, ou determinado sujeito, mas o fato de ela mesma ter o direito de dizer que não, aparece pouco”, criticou a médica.
A assistente social e representante da ONG Crioula do Rio de Janeiro, Lúcia Xavier, apontou que o estigma sofrido pelas mulheres negras é ainda mais cruel. Na avaliação da especialista, a maioria das negras vive em condição de exclusão social, o que faz com que toda a sua experiência de vida esteja marcada pela violência.
“As instituições públicas ou de justiça que deveriam ser espaços “protetores dos cidadãos e cidadãs”, também são lugares de violência. Não existe espaço bom o bastante para a experiência de ser negra nesse País. Essas experiências de violência só aprofundarão aquilo que já é uma condição para essas mulheres”.
O evento também contou com a contribuição da defensora pública do Estado de São Paulo, Ana Rita Prata; a juíza titular da 2ª Vara Criminal de Santo André, Teresa Cristina Cabral; a delegada da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, Jacqueline Valadares; e a médica legista do IML de São Paulo, Eliete Coelho Bastos.
Schirlei Alves