“Feminismo não é ser contra o homem”, diz promotora do Núcleo de Gênero do MP de São Paulo

09 de junho, 2016

(Brasileiros, 09/06/2016) Valéria Diez Scarance, coordenadora estadual do Núcleo de Gênero do MP paulista, disse que a noticia do estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio alertou o Brasil para a cultura do estupro

“Sou feminista sim”, respondeu de pronto a promotora Valéria Diez Scarance, coordenadora estadual do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, órgão a dois meses de completar um ano. “Sou uma profissional, uma mulher que luta para uma vida sem violência contra as mulheres.” Em entrevista à Revista Brasileiros, a promotora explica as raízes da conotação negativa em relação a algumas palavras e à existência de estereótipos “sobre o que é ser feminista”: “Na verdade, ser feminista simplesmente é buscar uma igualdade entre homem e mulher. Não é ser contra o homem, não é uma guerra de poder, é uma luta para uma vida de igualdade.”

Segundo a especialista, a “cultura do estupro” existe no Brasil desde sempre e o vazamento da foto da adolescente carioca serviu para colocar o assunto em pauta. “Hoje, o Brasil passa por um momento de transformação, por um inicio de um despertar para os direitos.” E é por isso que ela defende a existência do núcleo que coordena. Em nove meses de atuação, já realizou três campanhas de prevenção da violência, a última delas denominada #PeloFimDaCulturaDoEstupro.

Os promotores também não escapam. Os cursos de formação chegaram a 35 cidades e mais de 100 promotores de Justiça. “A nossa legislação usava até 2005 a expressão “virgem” como “honesta”. Avaliar a honra da vítima em um crime era algo natural.”

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Brasileiros – Quais as principais barreiras enfrentadas nesses dez meses de núcleo?

Valéria Diez Scarance – A nossa legislação de crime é federal, então o procedimento para a alteração da lei é muito complexo e demorado. Nós, como aplicadores da lei, precisamos de instrumentos e esse instrumento é a lei, só que não temos leis específicas para todos os casos. Por exemplo, não existe uma lei especifica que trata da vingança pela internet, para publicações de imagens intimas de mulheres. Em relação a esse crime, quando envolve menores de idade, pode ser aplicado um artigo da lei de crimes contra crianças e adolescentes, mas quando envolve mulheres maiores ele é tratado como um crime contra honra e ganha uma pena muita baixa e que normalmente não dá origem a processo. Existem também dificuldades em razão do tamanho do Estado de São Paulo. Outra é a falta da integração da rede. As delegacias, por exemplo, não ficam abertas aos fins de semanas. Além disso, temos os padrões machistas, sexistas e misóginos em toda a sociedade. Temos que realizar campanhas para conscientizar a população e modificar essa maneira de pensar.

Hoje, o Brasil enfrenta a repercussão do estupro de uma jovem de 16 anos, no Rio de Janeiro. O mundo também noticiou. Por que tantas reações desta vez?

Esse crime causou uma comoção nacional por vários aspetos. Primeiro, por ter havido a divulgação da imagem da vítima, uma exposição. A forma como a vítima foi retratada na imagem, exposta tal como objeto usado e descartado, causou realmente uma repulsa nacional. Mas, além desse aspeto de divulgação da imagem, do estupro – um crime que acontece todos os dias – e de tantas pessoas envolvidas, o que causou uma comoção maior é a forma como a vítima foi julgada, ofendida em redes sociais e atacada, e como, finalmente, ela foi revitimizada. Isso trouxe ao Brasil uma discussão sobre a cultura do estupro.

Então existe mesmo uma cultura do estupro no País?

O meu posicionamento é que existe uma cultura do estupro sim. Uma cultura que não era ostentada no Brasil, mas que esse estupro coletivo descortinou: essa cultura  apareceu diante da sociedade.

Em protestos contra o acontecido, mulheres denunciaram as letras das músicas de funk. Algumas letras ilustram mesmo essa cultura do estupro?

É como se fosse um dos substratos, uma das origens da cultura do estupro. Há muitas definições da cultura do estupro. Ela está firmada no machismo e no sexismo, mas vai um pouco além disso. Pela cultura do estupro se naturaliza o assédio e o ato sexual mesmo contra a vontade da vítima. Como se fosse inerente à masculinidade. Há um incentivo implícito ou às vezes expressa essa abordagem sexual. Por outro lado, a vítima é culpabilizada pelo ato, exatamente o que aconteceu no Rio. Então ao mesmo tempo há o incentivo ao sexo forçado e uma representação da masculinidade que acaba fazendo parecer que foi a mulher quem causou o estupro. Não se ensina o homem a não estuprar, se ensina a mulher a não usar saia, a não beber, a tomar cuidado com seu corpo…

A partir de quando as mulheres passaram a ser vistas como objetos e, finalmente, a partir de quando começaram a aceitar isso?

Desde a nossa origem elas sempre foram objetificadas. A nossa lei brasileira, por exemplo, sempre tratou a mulher como alguém que dependia da supervisão  do homem. A concepção de uma mulher totalmente capaz é uma visão muito recente, mas essa situação está naturalizada, não deixou de existir. A diferença é que agora as pessoas são capazes de se indignar frente a um estupro. Antes teria sido visto como algo natural. A nossa legislação usava até 2005 a expressão “virgem” como “honesta”. Então avaliar a honra da vítima em um crime era algo natural.

Você se considera feminista? Acha que o termo carrega uma conotação negativa?

Sou feminista sim. Sou uma profissional, uma mulher que luta para a igualdade entre todos e para uma vida sem violências contra as mulheres. Ainda há uma conotação negativa em relação a algumas palavras e existem estereótipos sobre o que é ser feminista, quando na verdade ser feminista simplesmente é buscar uma igualdade entre homem e mulher. Não é ser contra o homem, não é uma guerra de poder, é uma luta para uma vida de igualdade. Muitas pessoas por exemplo, discutem seus argumentos só por você ser feminista, como se sua palavra fosse viciada, como se todos seus estudos, suas experiências não tivessem valia.

Dados da Secretaria da Segurança Pública sobre os casos de estupros no Estado de São Paulo apontam 3 mil notificações de estupro só este ano. E esse número ainda estaria subnotificado. Por que as mulheres não denunciam os crimes?

Estudos mostraram que apenas 10% das mulheres noticiam os estupros. Isso por vários motivos, medo, vergonha. A nossa sociedade pede à mulher uma determinada conduta e, quando por algum motivo, se desvia dessa conduta, ela se sente corresponsável. Ela se sente culpável, com vergonha, e ela tem medo de expor sua vida privada. É o que aconteceu no Rio. Outro aspeto muito importante é que 70% dos agressores são conhecidos pelas vítimas, o que dificulta muito o relato.  Pode tratar-se da acusação de um pai, de um padrasto ou de um namorado.

E o que é preciso para a mulher ter mais confiança para denunciar?

Primeiro precisamos dizer, com campanhas publicitárias, que a culpa do estupro não é da vítima.  Depois, é preciso formar as autoridades que atendem as mulheres na hora da denúncia para que não sejam feitas perguntas intimas ou evasivas, como no Rio, por exemplo. Podem fazer perguntas intimas desde que estejam relacionadas diretamente ao estupro.  Perguntar se a vítima gosta de fazer sexo em grupo, não. A mulher é vítima duas vezes: primeiro pelo estuprador e depois pelas autoridades. São crimes muito específicos que devem ser atendidos por pessoas competentes.

E depois da denuncia, ela precisa de acompanhamento?

Sim. Primeiro, precisa de um atendimento rápido com proteção imediata. Se for um conhecido, ela precisa ser afastada dele. O processo deve estar encaminhado em sigilo para preservar a vítima. Depois, é preciso pensar o antes e o depois do estupro. O antes do estupro é a lei. O presente é a repressão dos casos. E o depois significa campanha de prevenção e avaliação dos erros cometidos.

Em algumas palavras, como a senhora descreveria a situação das mulheres no Brasil?

Hoje o Brasil passa por um momento de transformação, por um inicio de um despertar para os direitos, para a luta por esses direitos e para que situações tão graves como essa nunca mais ocorram. E, se acontecerem, que ao menos os agressores sejam julgados e não as vitimas. Passamos por um momento de evolução em que se estava havendo resistência a falar sobre gênero, sobre transgênero. Agora a discussão está sendo muito forte.  Até 10 anos atrás não se questionava o se questiona hoje.

Acesse no site de origem: “Feminismo não é ser contra o homem”, diz promotora do Núcleo de Gênero do MP de São Paulo (Brasileiros, 09/06/2016)

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