O estupro é uma “arma barata e eficaz” que destrói as mulheres e as sociedades em meio à indiferença – denuncia o ginecologista congolês Denis Mukwege, incansável porta-voz das vítimas de violência sexual que publica sua autobiografia esta semana.
(IstoÉ, 27/10/2016 – acesse no site de origem)
“Traçamos linhas vermelhas contra o uso de armas químicas, biológicas e nucleares. Hoje, devemos traçar uma linha vermelha contra o estupro como arma de guerra”, diz o médico de 61 anos em entrevista à AFP.
Conhecido como “o homem que cura as mulheres”, título de um documentário sobre seu trabalho, esse cirurgião fundou em 1999 um hospital em Panzi, na República Democrática do Congo. Nessa instituição, ele atende a mulheres estupradas nos conflitos que castigam o leste do país há mais de 20 anos.
Estupros metódicos, tiros nos genitais, introdução de objetos e armas, mulheres de povoados inteiros estupradas em uma noite. Doutor Mukwege presencia de perto o que chama “os abismos do horror”.
“Nas zonas em conflito, as batalhas são travadas nos corpos das mulheres”, lamenta.
“Quando se desencadeia uma guerra, não há fé, nem lei. As que sofrem são as mulheres e as crianças”, completou.
Nos últimos meses, esse médico e ativista, que diz dormir pouco, reuniu em um livro suas lembranças – as mais felizes e as tristes, muitas marcadas pelos conflitos armados.
Seu livro, “Plaidoyer por la vie” (“Apelo pela vida”), foi escrito para “dizer o que pensa” e falar sobre esse país, em que “ninguém se preocupava com as mulheres”.
Vítimas condenadas à eternidade
Filho de um pastor, Denis Mukwege descobriu sua vocação quando tinha apenas oito anos, ao acompanhar o pai na visita a uma criança à beira da morte.
“Um dia serei um ‘muganga’”, decidiu nesse dia, referindo-se à palavra com que se designa as “camisas brancas” usadas pelos médicos.
“Hoje, curo as vítimas de violência sexual, algo que jamais teria acontecido antes de atender à minha primeira paciente”, conta esse homem casado, pai de cinco filhos, que durante sua carreira operou milhares de mulheres.
Em um primeiro momento, seu hospital recebia dez mulheres por dia, mas com “a redução das zonas de conflito” esse número diminuiu.
“Esse ano recebemos seis e sete”, contou.
Ele ainda não pode comemorar, porém. Agora, o que o preocupa é a chegada ao centro de um número crescente de crianças de menos de cinco anos vítimas de violência.
“As vítimas já não vêm unicamente de zonas de conflito, mas de áreas consideradas mais tranquilas”, relatou.
O estupro se “propagou” na sociedade como um câncer.
“É a consequência da indiferença geral”, avalia.
Mas, “se unirmos nossas forças” podemos criar “uma linha vermelha”, denunciando a situação das mulheres sírias “estupradas nas prisões”, ou das “yazidis vendidas” na Internet, convocou o médico.
Nos últimos anos, Denis Mukwege intensificou sua luta em instâncias internacionais e recebeu vários reconhecimentos, como o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos de 2014. Seu nome foi citado em várias ocasiões para o Nobel da Paz.
Em seu país, a atenção internacional que ele recebeu não é vista com bons olhos. Sob ameaça, escapou da morte em várias ocasiões e vive com proteção permanente.
“As vítimas estão condenadas à eternidade… E seus executores?”, questiona, pedindo “um Tribunal Penal Internacional para o Congo” para julgar “todos esses crimes que continuam impunes”.
O doutor Mukwege, que consta na lista das pessoas mais influentes de 2016 da revista Time, diz que não quer participar da política.
“Esse não é um combate para conquistar o poder. É um combate para conquistar a liberdade e a justiça”, resumiu.