(Correio de Uberlândia – 07/08/2016) A Lei Maria da Penha completa dez anos em 7 de agosto. Voltada ao combate da violência doméstica contra a mulher, a lei leva o nome de uma farmacêutica que, por 23 anos, foi agredida pelo marido, chegando, até mesmo, a sofrer duas tentativas de homicídio, uma das quais a deixou paraplégica.
Quando se fala de violência contra a mulher no Brasil, na maioria dos casos, falamos de violência ocorrida dentro de casa. Segundo dados da Central de Atendimento à Mulher 180, serviço do Governo Federal que recebe denúncias de vítimas em todo o país, 85% das ocorrências são registradas dentro do lar ou em ambiente familiar.
Baseada nesses números, Marisa Sanematsu, diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão, ONG criada em 2001 com foco na luta pelo direito das mulheres e igualdade de gênero, afirma que o ambiente mais perigoso, hoje, para as mulheres brasileiras está dentro de casa.
Sanematsu é jornalista com mestrado pela Universidade de São Paulo (USP). Também é editora-chefe do Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha e já coordenou diversos projetos de monitoramento e análise da cobertura da imprensa sobre temas relacionados à mulher.
Em conversa com o CORREIO, ela afirma que a violência contra a mulher tem raízes históricas e ainda não é bem compreendida por parte da população. E, embora a Lei Maria da Penha tenha ajudado a nortear as questões de combate à violência doméstica, ainda faltam investimento público e recursos para que as medidas estipuladas no texto sejam mais bem aplicadas no interior do Brasil.
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CORREIO – Pessoas que prestam assistência a mulheres vítimas de agressões sempre afirmam que casos de violência contra a mulher são subnotificados. Por que ainda é difícil para a mulher vítima da violência tomar coragem e denunciar a agressão?
Marisa Sanematsu – Quando a mulher sofre uma violência, às vezes, ela nem mesmo percebe. A noção de violência não é clara para as pessoas. A Lei Maria da Penha é muito recente e foi só com ela que surgiu a noção de que existem mais formas de violência, além da física. Isso, na nossa cultura, é muito recente. Se você faz uma pesquisa, como nós periodicamente fazemos, percebe que só agora tem avançado a noção de que a violência contra a mulher é mais ampla. O serviço do governo federal, o 180, traz de uma forma mais clara.
Como isso acontece?
Quando o 180 começou, os relatos eram quase exclusivamente de violência física. Hoje, a maior parte é de violência psicológica, de agressão verbal, ameaça. Isso é um avanço, a pessoa perceber o que é violência e não naturalizá-la. O que existe na sociedade é uma tendência à naturalização: a pessoa é agredida e acha que é normal, que faz parte do relacionamento. Ela pensa: “Ah, ele estava nervoso ou bebeu demais”. Quem acompanha os casos sabe: essas pequenas violências vão aumentando em frequência e intensidade.
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E essa naturalização se reflete como no comportamento da mulher?
Então, em relação à violência, tem isso: por que ela não denuncia, não reage? Às vezes, ela nem percebe que está em uma situação de violência. Às vezes, quando percebe, pode vir a sensação de que o momento vai passar, que é uma fase ruim. Na maior parte das vezes, a violência ocorre em uma relação afetiva. A vítima pode amar o agressor, casou, por exemplo, com ideia de que a relação deve dar certo. O mais comum é que a vítima comece a procurar maneiras para que a violência não se repita: vai começar a evitar situações que lhe deram problema com o parceiro, aceitar o que o outro falar para não criar conflito. Socialmente, a mulher tem o papel de manter a relação. Pesquisas de opinião mostram que as pessoas consideram a mulher a grande responsável por manter um casamento. Isso é um preconceito muito forte e faz com que a vítima, que não consegue controlar a situação de violência, se sinta culpada, porque a “obrigação” de fazer o relacionamento ficar bom é dela. Vem o sentimento de ter fracassado no papel, vem a vergonha de se expor, para parentes e amigos, a situação.
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“Pesquisas de opinião mostram que as pessoas consideram a mulher a grande responsável por manter um casamento. Isso é um preconceito muito forte e faz com que a vítima se sinta culpada, porque a ‘obrigação de fazer o relacionamento ficar bom é dela”
Pesquisas mostram que homens são mais vítimas de crimes violentos fora de casa, em vias públicas, diferentemente das mulheres, que são mais vítimas em casas, em ambientes familiares, em boa parte por parceiros. Como explicar isso? Tem a ver com sentimento de “posse” sobre as mulheres?
Exatamente. Em primeiro lugar, em pesquisas do SUS, pesquisas sobre vitimização, a gente vê que o lugar mais perigoso para a mulher é dentro de casa. Isso é muito absurdo. A casa deveria ser o lugar de segurança, descanso do cidadão. A violência em casa é muito complicada, tem a ver com as relações desiguais da sociedade, que faz com que as pessoas pensem que uns valem mais que os outros. Vale mais quem tem mais poder, o que manda. O mais fraco obedece. Em termos de Brasil, até início do século passado, a mulher era uma propriedade. Havia situações, até mesmo em forma de lei, que a mulher não podia tomar uma atitude sem autorização do marido. A mudança desse tipo de situação começou a acontecer muito recentemente e as mudanças culturais não são tão rápidas. Hoje, estamos vendo discursos de empoderamento, tentativas de mudar esse quadro de diferenciação.
Quais as consequências dessa insegurança dentro de casa?
A violência doméstica é muito preocupante porque, em um primeiro momento, não se trata de segurança pública. Só depois, quando o crime já é cometido, é que a polícia é chamada. A violência doméstica acontece entre quatro paredes, com muita culpa e vergonha por parte da mulher, e sem controle de forças externas, diferentemente da rua.
Da parte do homem, muitas vezes existem justificativas: “Ah, mas ele estava nervoso, com problemas, por isso agrediu”. O que as pessoas têm que parar para pensar é que esse homem, que está nervoso e com problema, ele não bate no chefe, no colega de trabalho, não briga com o cobrador de ônibus. Ele vai para a casa, onde ele pensa que é o domínio dele, e bate na mulher.
“O que as pessoas têm que parar para pensar é que esse homem, que está nervoso e com problema, ele não bate no chefe, no colega de trabalho, não briga com o cobrador de ônibus. Ele vai para a casa, onde ele pensa que é o domínio dele, e bate na mulher.”
Como a questão da violência contra a mulher vem sendo tratada por meio das políticas de Estado no Brasil?
A ONU mesmo fala, em diversos documentos, que o combate à violência contra a mulher depende de legislação e de políticas públicas. Você precisa ter essas duas bases. O que a gente tem? A gente tem a Lei Maria da Penha, que está em vigor desde 2006. É uma lei boa, já foi avaliada pela ONU e é considerada a terceira melhor lei do mundo para o assunto. Agora, o que acontece, é que a gente precisa de políticas públicas para efetivar tudo o que está na lei. E é aí que não há sucesso. Falta mais investimento político e financeiro para, realmente, implementar a Maria da Penha. Temos alguns equipamentos, uma rede de serviços para o atendimento das mulheres vítimas de violência, só que essa rede ainda é muito pequena, muito limitada, muito restrita às capitais. Se você pensar que temos mais de 5 mil municípios no país, essa questão de enfrentamento à violência é muito debilitada. A lei ainda está sendo implementada muito aos poucos. A gente tem algumas capitais onde há tribunais, promotorias públicas especializadas em violência contra a mulher, que fazem um atendimento multidisciplinar e com visão de gênero, com pessoas treinadas e capacitadas que entendem o porquê dessa mulher demorar tanto para denunciar, do porquê algumas depois retiram a queixa. Mulheres que estão em locais mais afastados não dispõem dessa rede e sofrem sozinhas.
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Quais partes da Lei Maria da Penha ainda não foram bem implementadas?
A Lei Maria da Penha, por exemplo, determinou ser necessário a obtenção de dados sobre a violência contra a mulher. Os casos já são muito subnotificados, a maioria das agressões não vai parar nos registros. Tendo em mãos os registros, as informações podem ser cruzadas e estudadas. Hoje, nós temos secretarias públicas, nos Estados, e cada uma faz sua contagem, suas estatísticas, cada uma a seu modo. Quando você vai analisar, estudar, não é possível obter dados concretos sobre casos registrados, número de medidas protetivas aplicadas.
Em que casos isso ocorre?
Por exemplo, com o feminicídio: nas estatísticas de mortes violentas, você não consegue discriminar as causas do crime. Você não sabe, por exemplo, se uma mulher foi atropelada em uma avenida ou se ela foi atingida com o carro pelo ex-marido, por vingança. Não dá para ter uma dimensão do problema. A questão das estatísticas é muito importante e agora, só bem recentemente, que estamos vendo alguns passos. Por exemplo, o Conselho Nacional do Ministério Público está lançando um sistema informatizado para unir os dados dos Ministérios Públicos de todos os Estados e analisá-los.
O que mais precisa ser feito?
Mesmo campanhas educativas, que também estão previstas na Lei Maria da Penha, nós temos poucas. E falamos de campanhas não só na mídia, como também nas escolas, igrejas. São medidas importantes, de longo prazo, que são essenciais para se ter uma dimensão dos quadros e gerar uma mudança gradual de mentalidade, atitude das pessoas. Infelizmente, estamos enfrentando até agora uma resistência muito grande para trabalhar com a questão de gênero nas escolas. Na cabeça de muitos políticos conservadores, queremos acabar com a família ao propor a discussão de gêneros, mas na verdade não tem nada disso, a discussão até passa pela proteção da família, se você pensar em tudo o que a violência contra a mulher acarreta.
Aproveitando essa questão das políticas públicas que esbarram em visões mais conservadoras, podemos dizer que o desconhecimento sobre a gravidade e a extensão da violência é ainda o principal obstáculo para o enfrentamento do problema?
O sonho, o ideal, é que a gente rompesse com essa cultura de violência contra as mulheres. Essas questões são importantes de serem abordadas pela mídia. É importante que crianças, quando presenciem cenas de violência, percebam que alguma coisa está acontecendo de errado, que não é natural. Mesmo porque, quando se acha que é natural, as pessoas vão repetir o comportamento. É importante desconstruir esse ciclo de violência e que mais pessoas se conscientizem de que é errado, de que não é natural, de que não é uma coisa simples. A gente sempre tenta trabalhar com a questão de nunca julgar a vítima. Isso é muito importante. Se você fizer uma pesquisa, de forma geral, as pessoas condenam a violência contra a mulher, mas, no dia a dia, acabam questionando “ah, o que essa mulher fez para provocar o cara? Ela deve ter feito alguma coisa”. Ainda temos essa noção que existe justificativa para violência.
“As pessoas condenam a violência contra a mulher, mas, no dia a dia, acabam questionando “ah, o que essa mulher fez para provocar o cara? Ela deve ter feito alguma coisa’. Ainda temos essa noção que existe justificativa para violência”
Você fala da importância da mídia na divulgação do combate à violência contra a mulher. A mídia é um reflexo da sociedade e também é composta por pessoas que têm preconceitos. Como é o papel da mídia brasileira no reforço de preconceitos e valores misóginos hoje em dia?
É difícil a gente falar de uma forma geral de mídia brasileira, ainda mais hoje em dia, quando vemos a força da internet, das mídias sociais. A gente tem diversos segmentos no país. No instituto Patrícia Galvão, a gente, há muitos anos, faz monitoramento da imprensa sobre assuntos das mulheres, em especial, violência. O que se percebe é que existe uma abordagem sensacionalista, que chega a mostrar até corpos de mulheres vítimas de violência, feita principalmente por mídias mais locais. Mas também existe uma imprensa com visão de responsabilidade maior, que percebe a importância do tema e, em alguns casos, até mesmo evita a exposição de julgamentos e estereótipos. Desde a Lei Maria da Penha, a imprensa avançou na abordagem sobre a violência contra a mulher. O tema sensibiliza e muitas pessoas estão vendo que é possível conhecer, fazer um outro caminho.
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Ultimamente, principalmente na internet e nas redes sociais, vemos muitos discursos falando em empoderamento feminino. O que seria isso?
Esse movimento tem muito a ver com a cultura com desigualdade entre homens e mulheres. Essa cultura que tolera e até aplaude essa desigualdade. Esse empoderamento, esse discurso, tem a ver com o rompimento com essa cultura, com naturalização da desigualdade entre homens e mulheres. As meninas, hoje, percebem, sabem que não valem menos que os meninos. Sabem que não devem aceitar essa ideia. Falando na gama de gêneros humanos que existem, estão todos percebendo que ninguém é menos que o outro. Estão todos percebendo que, se você não der voz a essa expressão, não se manifestar, não vai mudar o mundo. Hoje, as mulheres estão se apropriando de canais, como as redes sociais, para dizer que não toleram mais essa desigualdade.
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