Marina conta sua história numa voz tranquila, mas os detalhes são horríveis.
(BBC Brasil, 31/01/2017 – acesse no site de origem)
Ela diz que seu marido bateu nela quase todo dia por mais de um ano. Puxando a meia, mostra uma grande cicatriz em seu calcanhar, onde uma placa de metal foi enfiada. Seus pés e quadris foram esmagados quando foi empurrada pela janela de seu apartamento, que fica no segundo andar.
Mais de 600 mulheres russas são mortas em suas casas a cada mês, de acordo com estimativas policiais. E alguns temem que a situação piore ainda mais agora: A Câmara dos Deputados da Rússia aprovou uma emenda que retira a violência doméstica do código criminal.
No caso de Marina, ela sobreviveu à queda de dois andares, mas passou três meses numa cadeira de rodas. Mesmo assim, os abusos não cessaram.
“Depois que ele me bateu enquanto eu estava na cadeira de rodas, fui à polícia”, lembra ela, que agora vive num abrigo para mulheres vulneráveis no subúrbio de Moscou.
“Meu rosto estava inchado e meus lábios, dividos no meio. Mas mesmo isso não o deteve. Eu estava na delegacia em lágrimas dizendo que não podia voltar para casa porque ele iria me bater”, conta Marina.
“Mas o policial disse ‘isso não é um hotel, nós não podemos mantê-la aqui’, e foi isso.”
‘Proteção à família’
Se o presidente Vladimir Putin assinar a mudança na lei, como esperado, réus primários que baterem em membros da família, mas não forte o suficiente para que a vítima seja hospitalizada, não serão sentenciados à prisão.
A penalidade máxima será uma multa ou até uma noite na prisão sob custódia policial. A emenda tramitou no parlamento em meio a discussões sobre como proteger a família de interferência.
“Para nós, é extremamente importante proteger a família como uma instituição”, explicou Olga Batalina, uma das autoras da emenda.
A proposta dela reverte uma mudança aprovada em julho passado, quando bater em parentes foi definido como uma ofensa criminal.
Celebrada por ativistas de direitos das mulheres, a mudança gerou alvoroço entre a cada vez mais conservadora classe política russa.
Deputados a condenaram como “contra a família”, argumentando que um estranho poderia bater numa criança e ter uma multa, enquanto um pai que fizesse o mesmo seria condenado à prisão.
Combate aos valores ocidentais
Reverter essa mudança é parte de uma contraposição mais ampla na Rússia aos valores ocidentais, que muitos veem como estranhos ao país.
“Estamos falando de conflitos de famílias. Você não deveria olhar para esse problema de um ponto de vista liberal”, argumentou o deputado ultraconservador Vitaly Milonov.
“Isso é como ter três numa cama. Você está dormindo com sua mulher – e uma organização de direitos humanos.”
Mas Marina e aqueles que coordenam o abrigo acreditam que vítimas de abuso precisam de mais proteção legal, não menos.
Hoje, há cinco famílias apertadas numa casa no terreno de um mosteiro ortodoxo.
O lugar tem o barulho de crianças brincando – é agradavelmente caótico, confortável e seguro. Financiado por entidades de caridade, dá abrigo e aconselhamento às mulheres.
Elas também recebem orientação sobre como prestar queixa criminal contra os abusadores, um processo difícil mesmo antes de a lei ser mudada.
“Apenas uma mulher conseguiu levar seu caso à Justiça”, disse a diretora do abrigo, Alyona Sadikova. Mesmo assim, o agressor recebeu anistia e foi solto depois de um mês na prisão.
“Agora a punição máxima por espancamento é uma multa. E se a mulher for para casa, o marido pode se vingar”, alerta.
A mudança legal também devolve a responsabilidade de prestar queixa criminal e coletar evidências para a vítima: os policiais não vão automaticamente abrir o caso.
“Para uma pessoa que está numa crise profunda, isso é simplesmente irreal”, argumenta a diretora do abrigo.
‘Liberdade para bater’
Um projeto de lei específico para tratar da violência doméstica foi enviado ao parlamento há mais de um ano. Ele inclui ordens de restrição, prevenção e treinamento especial dos policiais.
Mas a proposta não teve avanço. Em vez disso, deputados abrandaram as penalidades contra abusadores.
“É como se tivessem liberdade para bater, como se um tapa ou um empurrão não fossem algo sério. Mas isso pode levar a consequências muito graves”, alerta Irina Matvienko.
Ela é responsável por um serviço telefônico no centro Anna, que recebeu cerca de 5 mil chamadas ano passado de mulheres buscando ajuda.
“A violência doméstica não é uma briga de família normal. Estamos falando de um comportamento sistemático. Então permitir a impunidade é muito perigoso, porque a mulher está cara a cara com seu agressor”, argumenta.
Marina agora está segura e, pouco a pouco, começa a reconstruir sua vida.
Ela tem um emprego na padaria do mosteiro e está fazendo economias para se mudar para um apartamento com a filha de 10 anos. Mas não conseguiu evitar que a mais nova fugisse de casa descalça e em pânico – e luta contra o marido por sua custódia.
“Como eles podem deixar que ela fique com ele, apesar de tudo o que ele fez?”, questiona Marina.
Apesar das cicatrizes em seu corpo, seu marido nunca foi condenado. A preocupação é que menos agressores vão responder a processos agora, e intervir antes que o abuso se torne perigoso pode ficar ainda mais difícil.
Sarah Rainsford